Aviso: o título não é meu. Como no Brasil só se escreve e fala sobre crise. Crise disso e daquilo. Então, todas as vezes que me deparo com palavra “crise”, tenho a mórbida curiosidade de saber do que se trata. Caso típico do ocorreu quando, ao folhear um dos nossos jornais, dei de cara com essa chamada numa das páginas internas, editorada com certo destaque: “Elite de SP sustenta ‘ilhas sem crise’ no mercado de luxo”. Como?, assaltou-me a interrogação íntima. Ainda há mercado de luxo?! Ao mesmo tempo, lembrei-me de um shopping de São Paulo, onde estive para assistir a um filme e dar uns volteios, tipo rolezinho. Os preços elevadíssimos. Numa vitrine, vi exposto um cordão, cravejado de algumas pedras. Preço: mais de oitocentos mil reais. A pulseira, no mesmo estilo: mais de trezentos mil reais. Tudo isso dava para comprar um bom ou dois modestos apartamentos. Mais adiante, um jogo de malas, mais de oitenta mil reais. Aí fiquei pensando: no Brasil, temos uma classe altíssima, uma alta, a média, metida a besta, que faz passeata e acampamento para essa turma de ricaços, e a pobreza, que representa a grande parcela de nosso povo e trabalha para sustentar essa turma da mamata, ou melhor, da grana.
A notícia que destaco “ilhas sem crise” informa, com a pompa merecida, que restaurantes e lojas frequentadas pela classe alta (altíssima, né?) paulistana veem o faturamento cair pouco ou até crescer. Enumera esses paraísos da turma dos milhões (de dólares), como o restaurante A Figueira Rubaiyat, nos Jardins, com agenda de reserva lotada até janeiro de 2016. Ou o restaurante Spot, na Bela Vista, onde a espera por uma mesa pode levar cerca de duas horas e meia. Diz mais a notícia anticrise ou dos sem crise, infelizmente para os pessimistas, que, no shopping Cidade Jardim, que abriga grifes de luxo como Giorgio Armani e Hermés, as vendas aumentaram 17% no primeiro trimestre deste ano em comparação a 2014. Um habitué desses ambientes, em que a crise é notícia apenas para pobre, e de espírito, costuma beber de seis e doze garrafas de champanhe por dia, dando preferência a Dom Pérignon, vendida cada uma dessa preciosidade a R$ 1.028,00.
Aí voltei a pensar: deu a louca em nossos jornais, que não deixam a crise de lado, sempre fazendo referência nefasta a ela. Mas, mais recentemente, informaram que as principais redes varejistas (ou seja: Grupo Pão de Açúcar, Carrefour, Walmart, Lojas Americanas, Magazine Luiza etc.) abriram mais lojas nos nove primeiros meses de 2015 do que no mesmo período de 2014. Volta a minha perplexidade. E o tão decantado mercado aguenta o aumento de oferta? Ainda: e a crise?
Tudo isso fez com que o filósofo Vladimir Saflate, aqui muitas vezes citado, escrevesse um texto na Folha – Ilustrada, 6 de novembro de 2015 – a partir dessa necessária interrogação: O que realmente entrou em crise? E lá pras tantas, faz estas ponderações de perplexidade, que são de todos nós: “Nestes últimos meses, o Banco Itaú anunciou o maior lucro líquido na sua história entre abril e junho, a saber: R$ 5,9 bilhões só em um trimestre. Cifra praticamente igual ao seu lucro do terceiro trimestre. O Bradesco teve R$ 4,12 bilhões de lucro líquido no terceiro trimestre.” E, em seguida, enfatiza Saflate: “Quem quiser entender a crise brasileira deveria se perguntar como um país com economia em contração pode ter lucros bancários tão exorbitantes.” Resposta: não há explicação para esse fenômeno capitalista, que cumpre o evangelho de Mateus, numa interpretação anticristã, ou melhor anticrise: pois àquele que tem, lhe será dado e lhe será dado em abundância, mas ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado. Uma verdade inquestionável: os lucros exorbitantes desses bancos não têm ajudado nem contribuído para reduzir a desigualdade social; pelo contrário, têm aumentado.
Felizmente, apesar dos pesares, segundo o Pnad 2014, a taxa de analfabetismo encolheu para 8,3% da população. Nesse ponto, sim, é possível se ter uma redução da desigualdade, em face da perspectiva da melhoria de vida do povo. Tanto que o Brasil ficou menos desigual em 2014, isso pelo décimo ano consecutivo. Talvez seja por isso que alguns casais, ao casarem, estão recorrendo ao aluguel de limusine – aquele carrão norte-americano -, cujo serviço custa em torno de 10 mil reais.
Nada obstante tudo isso, há sempre os pessimistas de plantão, pregoeiros do fracasso, mas otimistas para si mesmos. O boa-vida Abílio Diniz, ex-Pão de Açúcar, fez uma declaração ao gosto de nossa grande mídia. Disse uma idiotice, que foi divulgada como se fosse algo inteligente. Declarou do alto de sua fortuna de milhões de dólares: o Brasil está em liquidação. Pronto! Daí pra frente foi destaque em jornais e revistas. Dizem os adeptos do fracasso que tal sentença teve repercussão no mundo econômico. Alguma coisa anda errada, ou com o Abílio, ou com a sua decantada frase, ou com as pessoas que nela acreditaram, isso porque, sem alarde, apregoa o noticiário que Abílio Diniz acaba de adquirir um jato executivo no valor de 74 milhões de dólares, equivalentes a 300 milhões de reais. O que nos leva à fatídica conclusão, seguindo a máxima machadiana, a verdade é essa (da frase), sem ser bem essa, pelo menos para o nosso Abílio.