Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções
Se lembra quando toda modinha falava de amor
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou

(Maninha, de Chico Buarque)

 Apesar de “você”, hoje eu quero paz. E, apesar do Sísifo dos nossos tormentos, lembrando Dolores Durante, eu quero, muito mais que isso, eu quero a paz de criança dormindo/e o abandono de flores se abrindo.  Quero a alegria de um barco voltando/quero ternura de mãos se encontrando. Não, não quero a morte. Quero a vida. E, nesse querer, às vezes vestindo a roupa da arrogância de um lirismo fora de época, desatualizado, contrario o viver opulento das faustas mesas regadas a vinhos italianos, cujas uvas foram espremidas por muitos que já não mais vivem, mas que conseguiram atravessar a ponte difícil desse sofrido viver, neste mundo nosso de cada dia em que o Sísifo, por ignorância ou burrice mesmo, tem, como modelo de resistência patriótica do mal que consome a humanidade, seres que se deixam banhar, por necessidade ou por ignorância, em águas pútridas de esgoto, carregadas pelas chuvas torrenciais. Nessa compulsão de Dr. Bacamarte, Sísifo vai carregando a sua pesada pedra da incongruência, tisnada pela incompetência e insensibilidade, e eu aqui, apesar da resistência à putrefação dos esgotos e de não ser um atleta espartano, faço a genuflexão perante a paz e entoo o canto de amor à vida.

Nesse canto de amor à vida, vieram à mente perdida na ânsia de pensar e externar algumas lições, retiradas de alguns livros cheios de letrinhas (alguns deles com muitas letrinhas), mas que sou obrigado a dedicar algum tempo a eles, por necessidade de aprender ou pelo simples prazer da leitura. Foi assim com Utopia, de Thomas More. Uma leitura feita há muito tempo. Depois, repetida não mais como mera leitura de um curioso a querer saber o que representava a tão falada obra para o pensamento humanístico. E essa repetição foi feita, há muitos anos, sob o manto de um estudo mais refletido.

Não vou aqui examinar e discutir o pensamento de More, um filósofo, teólogo e pensador humanista. Não é bem isso. Ocorre que, quando estava lendo o livro Bala perdida – a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação, editado pela Boitempo, deparei-me, no frontispício, com uma citação feita por Eduardo Suplicy, na qual se refere à clássica obra de More, onde consta um diálogo, já àquela época, em 1516, sobre a crítica às penas cruéis, que não contribuíam para redução da criminalidade. Anotei a referência e voltei à Utopia. Nessa passagem, no Livro I, consta um substancioso diálogo entre o autor e uma personagem – Raphael. Diz Raphael que foi recebido com enorme amabilidade pelo reverendíssimo John Morton, arcebispo de Cantuária, além de cardeal e lorde chanceler da Inglaterra. Ao jantar com o cardeal, um certo advogado inglês estava presente e falava com grande entusiasmo sobre as rigorosas medidas punitivas que vinham sendo aplicadas contra os ladrões. E enfatizava: - Temos os enforcados por toda parte. Em seguida, pergunta: (Ainda assim) por que continuamos infestados de tantos ladrões? Ante essa indagação que deixa transparecer dúvidas sobre os resultados punitivos, a personagem de More discorre a respeito da ineficácia dissuasiva da pena, e acrescenta: - E nenhuma pena no mundo impedirá as pessoas de roubarem, se esta for a única maneira de obterem comida. Conclui:

 - Em vez de infligir essas terríveis punições, seria muito mais adequado garantir a todo mundo alguns meios de subsistência, para que ninguém, sob a aterradora necessidade, viesse a se tornar ladrão e, depois, cadáver.

Essa utopia (um esse ideal que não quer ser ideal, mas uma possibilidade profética e perene de realização humana) já dura 500 anos. E continuamos sem chegar a lugar nenhum. Nessa utopia criada por More, seguindo as pegadas de Platão, o ideal é a república: o governante é apenas servidor do povo, e não ao contrário.

É apenas um sonho? Não. É um ideal: o que se quer. Martin Luther King, na luta que travou na defesa do reconhecimento e efetividade dos direitos civis aos negros, sonhou. Eu tenho um sonho, dizia. E repetia: ”...não ficaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos inenarráveis horrores da brutalidade policial”. Nós brasileiros - muitos brasileiros, das favelas e mocambos, continuamos, como Luther King, sonhando. Débora Maria da Silva tem esse sonho, brotado de um pesadelo: o seu filho foi brutalmente assassinado, em 2006, por homens encapuzados durante a vingança policial aos ataques do PCC. Também a mulher de Amarildo Dias de Souza, desaparecido, em 14 de julho de 2013, após ter sido detido por policiais, tem o sonho de encontrá-lo.

Com todos esses desalentos, precisamos realizar nossas utopias. Desarmados e sem armas. Sem estar à esquerda ou à direita. De outra forma, é melhor viver o sonho da paz, antes que o pesadelo de um futuro sem utopia nos destrua.

Membro da AML e AIL.