Lembrei-me desse gênio e quase relegado ao total esquecimento, que, em 1942, deixou a faculdade de medicina para seguir a carreira artística, com grande sucesso, como compositor, cantor, apresentador e humorista. Gordurinha, baiano, nascido em Salvador, em 10 de agosto de 1922, foi batizado como Waldeck Artur de Macedo. Em 1938, os seus biógrafos esclarecem que lhe foi dado o apelido de Gordurinha pelo inusitado fato de ser, na juventude, muito magro. Não teve vida longa. Morreu, no Rio de Janeiro, no dia 16 de janeiro de 1969, com 46 anos de idade. Aos 16 anos, começou a vida artística na Rádio Sociedade da Bahia. Depois, esteve na Rádio Tamandaré do Recife, em Pernambuco, onde produzia e apresentava programas. Também atuou na Rádio Jornal do Comércio. Em 1952, foi para o Rio de Janeiro, integrando o cast das duas mais importantes rádios da época: a Tupi e a Rádio Nacional.
A lembrança de Gordurinha não foi por acaso. Tenho em meu poder um CD editado, no ano 2000, pela Warner Music, da série "Enciclopédia Musical Brasileira", que congrega os talentos de Gordurinha e Jackson do Pandeiro, cujas trajetórias se entrelaçaram, de modo definitivo, quando Jackson, paraibano, nascido em Alagoa Grande, em 31 de agosto de 1919, cantou "Chiclete com Banana", fazendo grande sucesso, que repercute até os dias de hoje. Esse sucesso foi reeditado por Gilberto Gil, que, ao retornar do exílio londrino, resgatou, em 1972, essa eterna criação de Gordurinha e Almira Castilho, a qual, à época, em 1959, era mulher de Jackson do Pandeiro. Esse CD tem uma seleção musical de excelente qualidade. Ouço-o repetidamente. Quem o produziu selecionou preciosidades como Chiclete com Banana, Vou de tutano, Tambor da crioula, que se refere à nossa manifestação folclórica, Mambo da Cantareira, Vendedor de caranguejo, Súplica cearense, Sebastiana, Oito da Conceição e a célebre Baiano burro nasce morto.
Chiclete com banana, música de grande agrado e de muita criatividade, é um bebop-samba, que repudia a colonização cultural americana. Além do gingado da música, boa pra ouvir e pra dançar, a letra contém esse sentido crítico. Vejamos: Eu só ponho bip-bop / No meu samba / Quando o tio Sam pegar o tamborim / Quando ele pegar no pandeiro / E no zabumba / Quando ele aprender / Que o samba não é rumba / Aí eu vou misturar / Miami com Copacabana / Chicletes eu mistura com banana / E o meu samba vai ficar assim. E os últimos ainda acrescentam numa espécie de desafio: Eu quero ver o tio Sam / De frigideira / Numa batucada brasileira. Gordurinha gravou Chiclete sem sucesso. Mas Jackson, ao gravar, teve grande sucesso, ao fazer uma mistura de coco/rojão, como resultado de sua origem rítmica, por ser sua mãe cantadora de coco.
Era Gordurinha, era Jackson do Pandeiro, e, aqui no Pará, bem próximo de nós, era Ary Lobo, que também cantou Súplica cearense, Pedido a padre Cícero, Paulo Afonso e Vendedor de caranguejo, se entrelaçando num canto só, e fazendo o Brasil cantar. Caminho que foi seguido pelo maranhense de Pedreiras, João do Vale, criador de eternos baiões, como Pisa na fulô, Carcará, Na asa do vento, Peba na pimenta, Estrela miúda, Coroné Antônio Bento, também na voz de Tim Maia e Seu Jorge, Pé do lajeiro, Canto da ema, além do poema confessional Minha história, no qual resume as contrações da sua vida de nordestino na relação com seus amigos "doutô". E ressalta o talento de fazedor de baiões, nesses versos: Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz / Ficam tudo satisfeito, batem palmas, pedem bis.
O Teatro Artur Azevedo deste Estado está efetivando um projeto para realizar um musical sobre João do Vale. Trata-se de um resgate de alta relevância cultural, porquanto a teatralização desses musicais, haja vista os que foram feitos com Tim Maia, Elis Regina, Simonal e Vicente Celestino, vem se constituindo em grandes espetáculos, ao estabelecerem laços entre a vida pessoal do artista e os sucessos alcançados na carreira.
Gordurinha, pelo esquecimento a que está sendo relegado, próprio da cultura do nosso povo, está a precisar de um musical, para resgate do seu talento artístico. E até mesmo para comprovar que "o pau que nasce torto / não tem jeito morre torto / baiano burro garanto que nasce morto", como ele próprio diz na sua célebre canção Baiano burro nasce morto. Ou, ainda, para dar ênfase ao que é dito em Baianada: - "Um baiano é uma boa pedida / dois baianos um coisa divertida / três baianos uma conversa comprida / quatro baianos um comício na avenida", para num desafio, com humor critico, concluir que "o Brasil foi descoberto na Bahia e o resto é interior".
Ora, esse baiano, de muitas baianadas musicais, teve a acuidade poética de denunciar as mazelas nordestinas em Súplica cearense. E como Castro Alves, condoreiro exaltado como poeta colosso, suplica a Deus: Oh! Deus, perdoe este pobre coitado / Que de joelhos rezou um bocado / Pedindo pra chuva cair sem parar / Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a culpa foi / Desse pobre que nem sabe fazer oração. E em Vendedor de caranguejo, essa súplica encontra o sentido da denúncia do homem analfabeto com os pés sujos de lama, para que os filhos criados tenham fama. Gordurinha, no seu canto lírico ou de denúncia, teve essa sensibilidade poética que não pode ser esquecida, assim como o Poeta do Povo, João do Vale, a ser relembrado.
Edição Nº 15805
Gordurinha: Baiano burro nasce morto
Aureliano Neto
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