Aureliano Neto*

O Supremo já não é o mesmo. Ou melhor: há muito deixou de ser o que fora no passado. O episódio Gilmar Mendes e Lula denuncia essa face cruel, como a refletir na tela a caricatura degenerada tão bem traçada por Oscar Wilde na sua célebre obra O Retrato de Dorian Gray, que expressa o verdadeiro caráter da personagem elaborada pelo romancista irlandês. Pensa-se o Supremo como uma instituição sacrossanta, a exigir de todos nós absoluto respeito e mesmo reverência. Mas, ao darmos uma olhada no retrato, que se encontra recolhido no recôndito das decepções, vemos nele a fisionomia deturpada de uma figura consumida pelos mais abomináveis pecados. Talvez essa alegoria inicial não diga tudo que é preciso ser dito. Mas os fatos, amplamente divulgados, e as opiniões sérias, colhidas nos órgãos da imprensa, denotam essa comparação que demonstra a patologia cruel do momento ora vivido.
Ia começar bem do começo. Inobstante isso, uma nota publicada na coluna de Mônica Bergamo (Folha de São Paulo, Ilustrada, p. E2, em 31/05/2012) me chamou a atenção. Vejamos o que diz: "Há alguns dias, José Serra ligou para o ex-ministro Nelson Jobim. Pediu a ele que falasse com a revista 'Veja'. Jobim atendeu ao pedido do amigo - e só então soube da reportagem sobre Lula e o ministro Gilmar Mendes. Escaldado, Jobim disse não ter presenciado nada beligerante na conversa entre os dois, que ocorreu em seu escritório, em Brasília." Em seguida, afirma a jornalista que (expressão sua) "Mendes afirmou à revista que Lula tentou convencê-lo a adiar o julgamento do mensalão. Em troca, teria oferecido proteção na CPI do Cachoeira. Jobim contradiz o ministro. Lula também nega". O que me chamou a atenção nessa nota? Primeiramente, o contato José Serra com o ex-ministro Jobim, seu amigo, para que mantivesse contato com a revista Veja. Em segundo lugar, José Serra é do PSDB, candidato a prefeito de São Paulo e interessadíssimo no julgamento da ação do que a mídia denomina de "mensalão", ainda neste semestre, antes das eleições municipais. Mesmo assim, manifestado o interesse do amigo Serra, Jobim manteve a posição, que tornou pública, de negar os fatos, que, segundo Gilmar, ocorreram na sua presença e em seu escritório.
Sigamos no exame. O que diz Gilmar Mendes, inicialmente em matéria publicada pela revista Veja? Em resumo: que, no dia 26 de abril deste ano, no escritório de advocacia de Jobim, sofreu "pressão" de Lula para que adiasse o julgamento do dominado processo "mensalão", em troca de blindagem de sua pessoa na CPI do Cachoeira, onde poderia vir à tona sua relação de amizade com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM), homem da linha de frente da organização criminosa investigada. Gilmar Mendes afirma que rechaçou a proposta, acentuando que ficou perplexo com o comportamento e as insinuações despropositadas do presidente Lula. Este admite que houve o encontro casual no escritório de Jobim, porém nega peremptoriamente os fatos, e, ao mesmo tempo, ressalta o seu sentimento de indignação.
Em quem acreditar? Nas palavras do ministro, pelo simples fato de ser ministro , ou no ex-presidente Lula, que é possuidor de uma rica história de líder sindical e política, na qual não há registro do uso do subterfúgio da mentira?
A dúvida grassou e contaminou todos aqueles que, com isenção, analisaram os fatos. Eu os analiso sem isenção, porque acompanho Lula desde quando, sindicalista, lutou bravamente pela redemocratização do país. Como político, quando exerci as lides partidárias, votei todas vezes em Lula. Só no primeiro turno de uma das eleições presidenciais, em Covas; no segundo, estive com Lula, fazendo até campanha de rua. Portanto, deixo bem claro essa posição ideológica, para escoimar quaisquer dúvidas.
Mas, as minhas dúvidas justifico-as. Os fatos ocorreram no dia 26 de abril. Foram sendo divulgados no subterrâneo das futricas políticas, chegando à revista Veja, inimiga notória do PT e do ex-presidente Lula, tendo firme conexão ideológica com o PSDB. Gilmar utiliza a revista como instrumento de ataque. Ou seja: politiza os fatos, quando deveria, em tempo hábil, ter dado finalidade jurídica aos mesmos. Assim, pressionado, como afirma, e tendo ficado perplexo pelo comportamento e insinuações de Lula, deveria, como ministro, de imediato, comunicar ao STF, bem como ao Ministério Público, representando contra Lula. Ato contínuo, convocaria uma coletiva com toda a mídia, e não, como fez, dando preferência estranhamente à Veja, visceral inimiga do PT e de Lula. Há, a meu ver, uma gravíssima politização dos fatos. Ademais, dando-se o desmentido pela testemunha presencia (Jobim)l, vem, a seguir, a truculência destemperada de Gilmar, em entrevista aos jornais, tachando as pessoas de gângsteres e bandidas, numa linguagem de delegado calça-curta, que não dignifica o STF, até porque acusa sem exibir provas. Concluo: não acredito na sua versão, porquanto notoriamente politizada, com a nítida finalidade de forçar o julgamento do processo do mensalão, que interessa ao PSDB. Para isso, não deixa pedra sobre pedra, quando, em entrevista a O Globo (O País, p. 3, em 30/05/2012), declara que o Supremo "é um poder em caráter descendente". Ao dar outro sentido à conversa mantida amistosamente com Lula, num local, diga-se, inadequado para presença de um ministro do STF, buscando as páginas da Veja, a conversa, como diz o nobel Imre Kertész, perdeu o anonimato. Passou do absurdo real para o absurdo ideal. Um Ideal, nada edificante, preconizado por Gilmar Mendes. Infelizmente.

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