Aureliano Neto
Quando penso em felicidade, vem-me à memória um amigo que ficou lá bem atrás e só recentemente vim a encontrá-lo. Morávamos num bairro, banhado pela maré, que, de lua cheia, avançava vindo alcançar o início da rua principal, que dava acesso a outras vias laterais. Esse amigo vivia a felicidade da palafita. Não sei se ele era verdadeiramente feliz, por morar numa casa de madeira, coberta de palha e construída suspensa sobre as águas turvas da maré. Mas não o via triste. Estava sempre disposto a tudo, extravasando alegria num riso aberto, às gargalhadas. A mãe era rígida na educação, trabalhadora de fábrica, não o dispensava da escola, quer pública ou privada. Fazia das tripas coração, para que o filho, cujo nome denotava um ar de certa importância, Otacílio, para os que o conheciam na intimidade, estudasse. Não era um nome trivial. Tinha cheiro aristocrático. Só alguns arremediados ousavam ser Otacílio. Ainda é assim. Era conhecido por apelido, que ele aceitava sem qualquer resistência. Muitas vezes fui a sua casa em época de maré cheia. A água batia insistentemente no assoalho. Ficávamos sentados, ouvindo o batuque da água, a chapiscar na parte de baixo do assoalho, invadindo-a sorrateiramente, ou, com alguma resistência, só respingava. A felicidade de estar ali, sentindo sob nós a força da maré de lua, a sua ida e vinda, o bater constante e determinado, nos enchia de prazer. A mim, não tenho dúvida. Tinha uma inveja desse meu amigo, de não poder dormir, esticado numa rede, e ficar a ouvir aquele som do baque teimoso do mar contra a resistência do precário assoalho. A minha felicidade era exultante. A felicidade de uma vida naquela casa suspensa, de poucos cômodos, de pés enfincados na lama, mas banhada todos os dias pela água turva do mar. Da janela, víamos a extensão da maré. Algumas canoas se aventuravam passando rente às casas, impulsionadas pelo cravar do remo na inquietude da água, que teimava no ir e no vir. E deslizavam para longe. Sentíamos que a vida boa era aquela, sem grandes abastanças. Era a felicidade da palafita, com pouquíssimas exigências para que fôssemos realmente felizes.
Nunca quis a felicidade dos arranha-céus. Prefiro a felicidade do mar azul, quando olhado de perto e ou na distância. E a felicidade maior é quando ele nos chama, no vai e vem do quebrar das ondas, lançando as suas águas salgadas que cobrem a areia inerte, banhando-a e fazendo com que as suas águas retornem para o aconchego de suas entranhas inesgotáveis. A par dessa felicidade, alcançada a preço módico da natureza, há a felicidade da chuva, que, forte ou bem fina, nos convida a contemplá-la e clamar que lance a força de suas águas sobre nós para nos depurar de nossos pecados. Mas, não sei se vocês concordam - talvez não concordem, e quem sabe tenham razão - a maior felicidade era ficar na janela, vendo extasiado o cair da chuva escorrendo pela rua e levando consigo todos os restos de nossas vidas. As suas águas não deixavam pedra sobre pedra. Nada catastrófico, apenas a natureza em sua eterna naturalidade.
A felicidade da noite, de ver a lua, como a estar de olhos arregalados perscrutando os nossos segredos, a nos desafiar a dizer a amada: - Eu te amo! Essa lua, de clarão intenso nos obriga a dizer essas coisas bobas, mas necessárias. E ela, a amada, ante essas palavras provocadoras, ainda que de romantismo antigo, numa resposta rápida, com uma leve carícia, ou num sibilar que roça os nossos sentidos, diz-nos apenas: - Eu também, amor. Já é alguma coisa que provém da força da lua. Exigir mais seria obrigar indebitamente a felicidade nos fazer mais felizes. Mas a lua é simples. Está bem sobre a casa, bem perto do telhado, como se fosse a auréola de uma dessas imagens de santos renascentistas.
Felicidade do cheiro da maresia. A brisa que transita passando bem perto de nós. O vento forte que vem do mar. O cheiro diferente, gostoso, a convidar ao pecado da carne. Entra sem pedir licença - a sua liberdade, exercida sem freios - pela porta entreaberta, pelas frestas das janelas. Vem sem nenhum pudor às dependências mais íntimas. Esse cheiro nos sufoca de prazer. Um pouco de peixe, entremeado de outros odores, e da água salgada. No outro momento, vem-me a felicidade da minha amiga, que adorava, de pés descalços, pisar na areia branca, alabrastinamente de alva pureza. Caminhava essa minha amiga, a transbordar de sorrisos, com os sapatos seguros nas mãos. Estava tão feliz! Hoje, médica, cuidando de tantas doenças e dos seus doentes. Não tem mais tempo de viver a liberdade de pisar na areia solta, molhada pela água salgada do mar. Resta a mim, ainda, a felicidade da baladeira. Estilingue, para alguns. De forquilha da goiabeira. Éramos todos cowboys, dos filmes de domingo, portando uma poderosa arma de ataque, para derrubar as frutas dos galhos, ou matar inocentes passarinhos, não por maldade, mas para ser o herói do pedaço. Pois é. Felicidade da patota. Do encontro da esquina, onde o futuro era um quase nada. Felicidade da mesa farta. Comia-se com a voracidade dos famintos. Todos mortos de fome. Ovo frito com farinha era o banquete dos deuses. Ah!, como eram felizes aqueles meus amigos. A mãe fritando peixe no leite de coco. Cheiro de água na boca. Logo à mesa rústica do peixe frito misturado no arroz branco, pronto, era só comer. A felicidade das mãos lambuzadas no óleo de coco que deu ao peixe o sabor que ficou eternamente na memória. São tantas essas felicidades que se dispersaram no tempo e que insistem em nos manter felizes.
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