Aureliano Neto*
Se refletida, a dúvida pode levar, no mínimo, a uma perturbação transitória. Confesso que não sei se fazer amigos exige menos da gente do que ter amigos. Com relação ao fazer, sou um tanto casmurro. Tenho imensas dificuldades de fazer amizades. Vem do berço, ainda menino de rua da Belira, onde tive toda a minha formação inicial no aprendizado de vida fora do lar. Tive bons amigos. Jogávamos bola. E dominó. Botão, também. Empinávamos papagaio. Fazíamos as nossas reuniões diárias na esquina da Macaúba, para discutirmos os assuntos mais fúteis ou sérios. Às vezes, o filme que fora visto por um e o outro não o vira. Aos domingos, íamos ao cinema, para assistir aos seriados, como o de Zorro, e a um filme de espadachim ou western, estrelado por nossos atores preferidos. Para vesperal do domingo, andávamos em grupo, quase uma patota; unidos na alegria e nos raros momentos de tristeza. Passado o tempo, cada um fora trilhar o seu destino. Todos tomaram o seu rumo. Pois é: cada um passara a viver para o seu lado. Penso nesses tempos, nesses amigos. Ainda os vejo, não com certa frequência; ora aqui, ora acolá. Lembrá-los me faz pensar que, embora tenha dificuldade de fazer amigos, sempre os tive, até porque nunca fui adepto da solidão. Paul Valéry afirmara: - Um homem sozinho está sempre em má companhia. Fujo da absoluta solidão, conquanto entenda que há necessidade de estarmos sós, para melhor refletir sobre nós mesmos. Nisso a necessidade da solidão, ainda que fugaz.
Poder-se-ia concluir então que ter amigos é mais fácil do que fazer amigos. É certo que vivemos em uma época em que prevalecem os interesses recíprocos. Uma mão lava a outra, dizem, sem relutância, os mais pragmáticos. Os mais pessimistas chegam a afirmar que poucas são as relações, havidas como de amizade, que fogem do pragmatismo das afetividades simuladas. É isso: afetividades simuladas. Representadas por salamaleques e expressões consagradas no cotidiano social, que apenas denotam significados vazios, efêmeros e de efeito instantâneo, cujos objetivos têm finalidade utilitarista. São as amizades de ocasião, que têm data de validade preestabelecida, a dependerem da qualidade e dos efeitos da água usada na lavagem das mãos.
É verdade: fazer amigos exige muito da gente. No curso de minha vida, fiz amigos e, ao mesmo tempo, tive muitos amigos. Já disse: sou um tanto casmurro e desconfiado. Ainda menino, quando era aprendiz de linotipista (profissão extinta pelo uso da computação em jornais), fiz um grande amigo. Uma espécie de protetor. Zé Ferraz me acolheu num momento complicado da minha vida e me deu proteção. Recebeu-me para ser aprendiz de linotipo no SIOGE, onde, com o seu ensinamento e de outros grandes linotipistas, aprendi o ofício, que me ajudou nos meus estudos. Zé Ferraz, esse grande amigo, nunca me criou qualquer obstáculo que impossibilitasse os meus estudos. Ao contrário, fez todo o possível para que trabalhasse e estudasse. Fora, sem o querer ser, uma espécie de pai. Devo-lhe muito. A sua amizade não foi pragmática; ao contrário, leal e sincera. Ferraz é uma lembrança que me enche de emoção, embora tenha seguido outro caminho e ele tenha ficado no SIOGE, mesmo após aposentado.
Outros amigos que fiz vieram no decorrer da vida. Sebastião, companheiro de luta, de São Luís e quando mourejávamos pelo Rio de Janeiro, morando em quartos alugados. Tivemos sempre uma afinidade intelectual e de vida. Líamos os mesmos livros e discutíamos. E como discutíamos... Foi uma convivência profunda. Quando colei grau, dadas as circunstâncias daquela época, tive pouquíssima participação na festa. Mas fui à colação de grau no Teatro Municipal do Rio. Sebastião veio de São Paulo para participar desse evento importante na minha vida. Ao sair da república, que ficava próxima ao teatro (na Lapa), ele disse: - Temos que ir de táxi. Não podemos chegar a pé. Eu resisti. Era tão perto. Ele insistiu. Fomos de táxi. Fiz-me presente, garboso, numa festa, que representava muito para mim e para ele. O amigo é aquele que se sente feliz com a felicidade do outro.
Os gráficos - profissão exerci durante mais de dez anos, como linotipista - foram meus grandes amigos. Expedito Moreira foi um deles. Nossa amizade remonta do ginásio às oficinas gráficas. Ele, um grande linotipista. Eu, um aprendiz; depois, profissional. Ao viajar para o Rio, tendo deixado a profissão, Expedito encaminhou-me para a casa da sua irmã – Rosário, onde fui bem recebido. Fiquei na casa de Rosário até quando me aprumei e pude seguir a minha vida, com os percalços naturais que adviriam a seguir. Expedito representou, naquele momento de mudança de vida, a luz a clarear meu caminho, pois, buscando novos ares, resolvera viajar como uma espécie de ave de arribação.
As amizades vão sendo plantadas e colhidas como as flores que cultivamos no recôndito do jardim incrustado em nossa alma. Aristóteles, em a Ética a Nicômaco, ensina, com secular sapiência, que “amizade é uma alma com dois corpos”. Não tenho dúvida sobre isso. A doença, que me acometeu, deu-me essa convicção: ter tantos e muitos amigos. Mas me trouxe uma outra certeza, no sentido da concepção aristotélica: tenho um imenso contingente de amigos, que acomodo com carinho no restrito espaço do coração. Lourival Serejo teve a fraternal preocupação de deleitar-me com a sua visita a São Paulo, para, pessoalmente, pudermos usufruir das nossas afinidades por alguns longos e agradáveis dias. Esse é o sentido que eterniza a amizade, em que as almas se completam, sem a necessidade de uma mão lavar a outra. Deve ser dito: a amizade sincera é tão eterna que nunca se acaba. De outro modo, nunca teve início.
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