Houve um tempo, que já se vai bem longe, que passei o carnaval espiando pela janela. Passavam os fofões, os caruás (blocos de sujo) e outras brincadeiras, e eu: daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não precisaria dizer: estava de castigo. Cometi uma dessas traquinagens imperdoáveis. Não podia ir para praça do Cemitério, palco do desfile popular: corso, blocos, escolas de samba (não tão escolas como as de hoje), o homem que se fantasiava de caveira, a turma que se vestia de mulher, e a sempre esperada Casinha da Roça. Quem não a visse, com o soar típico do tambor, não tivera visto o carnaval. Assim, foram três dias à janela, vendo o carnaval passar.
Mas... este ano não foi igual àquele que passou. Brinquei com toda a volúpia de um folião sedento de matar a lembrança daquele velho carnaval. Para não destoar o sentimento momesco, fiz um carnaval dos velhos tempos. Com Chiquita bacana e tudo. E saí vestido com uma casca de banana nanica e ainda encontrei Maria Escandalosa. Em cada esquina. Não me importei com o Pierrô apaixonado. Nem saí de mulher, porque tenho um divino respeito por elas. Simples: falta-me o perfil para travestir-me com a beleza, o romantismo e o charme da mulher brasileira. Para minha grata surpresa, saí mesmo fantasiada de direita. De paletó e gravata verde-amarelos. Com um livro de capa dura nas mãos (de autoajuda). Dei-me de cara com Maria Sapatão. Levantei em súplica as mãos aos céus e pedi a Deus que me livrasse daquela tentação. E disse: - Só pode ser coisa do demônio. E um folião ao lado replicou: - Não, aqui ele não tem vez. E acrescentou: - Tudo é carnaval!
Aproveitei o folguedo. Enfim, tudo é carnaval. Assim, os tambores rufando, fiz um discurso para defender com unhas e dentes e conscientizar a turma que a reforma trabalhista vai melhorar o bolso dos empresários e a vida do trabalhador. Aproveitei a grande atenção que me davam e, com todas as forças das convicções advindas da minha fantasia, pugnei pela reforma da previdência. - Está um caos, dizia, e repetia: - Pobre não tem direito a previdência, mas a providência, se possível, divina. Fui em frente no meu exercício de retórica carnavalesca: - Como já dissera Fernando Henrique Cardoso, aposentado é vagabundo. Pra que previdência? No auge desse discurso patriótico, gritei a todo pulmão: - Bolsonaro, eis a salvação da lavoura, ou melhor, consertei, da previdência. Precisamos de um homem forte. Mantenha-se o Congresso como está. Como diz o notório Malafaia, todos são servos de Deus. Não há que temer o Temer. Bolsonaro e Temer são a salvação deste nosso carnaval. Aí a turba ensandecida por essas rotundas palavras, como se ali estivesse um Hitler tupiniquim, levantava os copos e exortavam de satisfação: - Ditadura! Ditadura! Ditadura! Já, já, já.
Depois de todo esse elã retórico, cônscio da grave responsabilidade assumida, fui possuído de um ligeiro cansaço. Não o cansaço do movimento "cansei". Cansaço do exercício da contundência vernacular, exigida pela minha fantasia. Sentei-me numa velha espreguiçadeira para apreciar o carnaval do novíssimo e inédito programa da Globo, o BBB, donde colhi várias lições sobre como ser canalha, praticando as grandes novidades sobre incesto. Curti alguns momentos de descanso, e ainda tive tempo de lambuzar-me de algumas obviedades de Alexandre Garcia, pessoa que adoro, por dizer tantas platitudes éticas, que nem fedem nem cheiram.
Ali sentado, em plena festa carnavalesca, não deixei de apreciar as lições de políticas de FHC, personagem acima referida. Fantasiado por essa linda indumentária de direita, ainda assim fiquei em dúvida sobre a caducidade de nosso sociólogo, já ultrapassando a barreira dos 80 anos. Nosso FHC tem dito e redito aos quatro cantos, através de nossa consagrada mídia que dá divulgação ao nosso discurso (ainda bem), que o Huck (qualquer indignidade é mera semelhança) "sempre foi muito próximo do PSDB, o estilo dele é peessedebista". Tal insistente defesa para disputa do cetro presidencial, como direita convicto e fantasiado, me agradou deveras. A nossa escolha democraticamente tem ampla diversidade: o queridíssimo Bolsonaro, Huck, etc. E vamos sair por aí matando bandido, porque bandido bom é bandido morto, também quem se fizer de besta, e mais ainda não escapa um carro velho ou uma casa velha, todos serão reformados, porquanto enfim pagamos tributo é pra isso mesmo. E tudo é carnaval!
A par disso, soube que o Gedel, o dos 50 milhões, mas não o da mala, o amigo do Temer das horas fáceis, anda triste e choramingando, barriga cheia, a lamentar-se: - Os amigos me lançaram ao vale dos leprosos. Cá do meu canto de fantasia, fiquei perplexo. Claro que o conheço. Somos favoráveis à reforma trabalhista, na verdade desforra. Esses trabalhadores vinham bem de vida desde Vargas. Precisava acabar-se com esses privilégios. E também somos a favor da reforma da previdência. Até mesmo devemos começar pelos de casa. Mas, voltando ao Gedel, quero dizer que não me incluo nessa turma que o despreza. Tanto que lhe mandei um atencioso bilhete para que ele diga quais os amigos que o desprezam. Com toda essa distopia pós-carnavalesca, no romper das cinzas, encontro uns foliões que estavam bem alegres. Pensei: alguma coisa boa aconteceu. Ia despir-me da fantasia. Cautela. Não o fiz. Comemoravam exultantes, copos a tilitarem, que o Gilmar, o Mendes, engavetara por mais cinco anos o processo criminal do notório Romero Jucá. Resultado, comemoravam efusivamente: os crimes prescreveram. Tirei a fantasia. E concluí: carnaval sempre é carnaval.

* Membro da AML e AIL.