Os construtores do liberalismo e os iluministas (Locke, in: Segundo tratado sobre o governo civil; Montesquieu, in: Do espírito das leis; Rousseau, in: Do contrato social; ou, ainda, More, in: Utopia e Tocqueville, in: A democracia na América) devem estar se retorcendo em seus túmulos, pedindo ao Todo Poderoso explicação para esta distopia. E, ao mesmo tempo, sem uma resposta imediata, refletem e lamentam entre si: - Tantas lutas, tantas reflexões, tantos estudos, enfim tantos sacrifícios históricos, tudo em vão. E aí acentuam um esgar rodrigueano, buscando consolo no axioma popular: - Nadamos, nadamos e morremos na praia. Logo, quem poderia imaginar, em terra brasilis.

Mas...

Veio à mente desses nossos caríssimos antecessores uma frase que ficou famosa e fora muito repetida por quem estudou ou estudava o absolutismo monárquico.  Essa frase que era bem longa e mais abrangente, foi, durante o curso da história, resumida nesta exígua e contundente expressão: O Estado sou eu! A bem da verdade histórica, essa frase, que carrega em si e para o púbico externo um sentido de absolutismo autoritário, é composta de outras, que expressam a megalomania divina do seu autor: Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou Eu. Denotava toda concentração de força e poder enfeixados numa só pessoa: o célebre monarca francês Luís XIV, conhecido por Rei Sol, que, com poderes absolutos, governou a França e Navarra, nos anos 1643 a 1715, cujo reinado se estendeu por sete décadas, com a crença de que o seu poder era originário de Deus. Adorava ser idolatrada como monarca, ostentando o direito divino de ser o próprio Estado, até porque ele era a Lei.

Em tempos recentes, tivemos um ministro do Supremo Tribunal Federal que disse que a Constituição é aquilo que o Supremo diz que é. Bem. Como nos ensino o Bruxo do Cosme Velho, a verdade é essa sem ser bem essa. Não há dúvida de que a Corte Suprema é uma instituição jurisdicional soberana, mas tão só no sentido de ser a guardiã da Constituição Federal, o que a obriga estar sempre vigilante, para, em caso de provocação de partes interessadas, coibir quaisquer atos que atentem contra as normas e princípios que compõem - ambos não podem ser infringidos - a Lei Magna, que servem de pilastras ao Estado de Direito brasileiro.

Como conseqüência, nenhum cidadão brasileiro, por mais importante que seja, pode outorgar-se o título absoluto – ou de caráter absolutista numa expressão referente ao exercício do poder - de ser o Estado, a Constituição ou a Lei. Vivemos, até agora, numa República, formada pela estratificação das funções de poder, independentes e harmônicas entre si (art. 2.° da Constituição Federal). E por que isso? Não é tão simples responder. Requer toda uma rememoração da história da construção da ideias liberais, esteadas nos princípios da liberdade e da igualdade – mas não especificamente apenas no plano econômico, a não ser na obra de John Locke (in: Segundo tratado sobre o governo civil, que se fundamenta na proteção da propriedade, do livre comércio e na liberdade dos súditos). Assim, nesse caminhar histórico, vários pensadores foram os edificadores desses ideais da nova concepção republicana de Estado, em oposição ao absolutismo, resultando na tripartição dos poderes, e isso a partir de Locke, Rousseau, com O contrato social, e Montesquieu, com a célebre obra Do espírito das leis.

De toda essa argamassa reflexiva, assentada em profundos e sérios estudos iluministas, fincaram-se principiologicamente as pilastras hermenêuticas da Constituição norte-americana, de 1787, e a Revolução Francesa, que, com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, extirpou o absolutismo monárquico, ao reconhecer que todos os homens nascem e são livres e iguais em direito. Por isso mesmo, todas vezes que essa regra humanista foi vilipendiada, emergiu a guerra, a violência e o autoritarismo.

Mais: a tripartição de poderes teve como finalidade específica coibir o absolutismo, caracterizado pelo abuso de quem exerce o poder; desse modo, a aplicação do sistema dos checks and balances – freios e contrapesos, fixa um dique de proteção das garantias liberais contra o exercício do autoritarismo. Nesse sistema, que consolida a separação dos poderes, as funções do Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicas entre si. Ao serem exercidas, não há que se cogitar de excessos, que se contraponham aos princípios reguladores e supremos da Constituição Federal. Goste-se ou não se goste, é assim. O Estado de Direito não admite transgressões e transgressores, abusos e autoritarismo.

* Membro da AML e AIL.