Estava apressado. Ainda assim, conduzindo o veículo com muito cuidado. Mas o tempo me cobrava pressa. Em mim a inquietação de ter que chegar. Vinha-me a utopia irrealizável de estar na pele daqueles milionários da Paulista, que saem dos seus condomínios fechados em portentosos helicópteros, para o conforto de seus vastos e suntuosos escritórios. Mas... nada contra. Apenas o meu sonho, ou a possibilidade onírica de poder livrar-me dos obstáculos que se interpunham entre mim e meu ponto de chegada. A responsabilidade exigia de mim o dever de cumprir o horário. Tentei mudar de faixa de tráfego, da direita para a esquerda. Foi pior a emenda que soneto. Velho e antiquíssimo brocardo que ainda teimo, nesses momentos, de projetar na minha mente inquieta. Vão-se os tempos em que esses axiomas éticos eram recorrentes como justificativa de possíveis malogros. Pois é. Acentuava o meu avô: - Filho, cabeça que não pensa, corpo padece. Dito e feito. Fui pra esquerda, na ânsia de vencer o tempo. Mas nessa faixa, trafegava, passiva e pacificamente, um veiculo numa reles velocidade de vinte ou trinta quilômetros por hora. Não tive a estultice de despertar o condutor com o leve toque da buzina. Se o fizesse, seria uma afronta. Reduziria a marcha, ou pararia, e viria a mim com a fúria da insensatez, alegando que o veículo era de sua propriedade e a rua pública. E ficaria o dito pelo não dito.

Com certeza, tratava-se de um direitista, que estava, sem nenhum compromisso ideológico, na esquerda, apenas para cumprir um ritual de passagem. Não iria, por óbvio, atender a uma advertência, ainda que momentânea e necessária, revestida de alguma sensatez. Durante o meu exíguo tempo de tormento, seguia atrás daquele que, na esquerda, fazia do trânsito o amplo exercício de sua liberdade transgressora. E lembrei-me das aulas que me foram dadas numa escola de condutores de veículos automotores (isso mesmo!), quando da renovação da minha carteira de habilitação, nas quais o sapientíssimo mestre afirmava do alto do seu saber que a direita é o sentido do tráfego, e a esquerda é exclusiva para ultrapassagem. E mais ressaltava esse lente das leis do trânsito, com a ênfase dos que entendem das coisas complicadas, mas as fazem simples: - Todo motorista pode transitar pela faixa esquerda, a qual só deve ser usada quando há intenção de fazer uma ultrapassagem. Após pensar muito sobre essas luminosas lições, assaltou-me a cruel dúvida: Ou o motorista da frente, que não atava nem desatava do caminho, era um desses direitistas empedernidos, ou um esquerdista frustrado. O que me leva a vaticinar que já não existem direitistas ou esquerdistas como antigamente. Vejam o que ocorreu com o esquerdista Roberto Freire, que de tanto odiar Lula, entrou no exército de subserviência dos tucanos e foi-se homiziar em São Paulo, rincão da direita reacionária. Mas nesse antigamente, não tão antigamente, esse pessoal era mais inteligente, senão inteligente sem o "mais". Nos nossos tempos, fazem da truculência o sedimento da sua ideologia. Se Freud não explicar, talvez, quem sabe, o barbudo Marx, ideologicamente traído por Stálin, explique. Os dois já estão lá por cima, observando a turma daqui de baixo, e perguntando a si mesmos: meu Deus, o que é que eu fiz de errado?
Certo é que tenho uma grande, ou desagradável, desconfiança de direitista que vem da esquerda e esquerdista trânsfuga da direita. É desastroso. Meu avô, sempre um sábio, costumava afirmar: me diz com quem andas que te direi quem tu és. Não é preconceito, não. É fato. Querem um exemplo? Dou. Quando Roberto Jefferson, ainda gordinho, passou, com o "seu" PTB a tiracolo, a servir o governo Lula, pensei sem pestanejar: alguma coisa está errada, ou vai dar errada. E deu. A única diferença visível é que Jefferson, de gordinho e defensor intransigente do governo Collor, com operação do Uruguai e tudo, vestiu a fantasia do magrinho carente, mas sem perder a esperteza do sempre oportunista de servir a quem estiver no poder, haja vista a sua queridíssima filha que, no governo do golpista Temer, chegou a ser nomeada Ministra do Trabalho, embora tenha sido flagrada badalando o ócio nada criativo em uma praia no Rio de Janeiro. Ou seja: de trabalho só deu, e muito.
Roberto Bobbio resolveu escrever um ensaio sobre Direita e Esquerda, que foi um sucesso de venda. Ele mesmo se diz surpreendido, ao fazer o prefácio da edição de 1995, já que a obra alcançara, na área de ensaios, a lista dos best-sellers. Bobbio se afirma um homem de esquerda, e, historicamente, esclarece que, durante a Revolução Francesa, foi que nasceram a direita e a esquerda, mas não numa concepção horizontal da política. Chega-se, ainda assim, há alguma conclusão: a esquerda é igualitária. Ou seja: é atribuída à esquerda maior sensibilidade de diminuir as desigualdades; a direita é mais conservadora. E isso desde a sua origem na Revolução Francesa. A obra Esquerda e Direita - guia histórico para o século XXI, do professor português Rui Tavares, mostra que, na França, antes da tomada da Bastilha, nas deliberações dos Estados Gerais, que reuniam a nobreza, o clero e o Terceiro Estado, os opositores do rei Luís XVI se alinhavam à esquerda de quem presidia à sessão, ao combaterem o regime de desigualdade imperante naquele momento de crise do sistema monárquico, enquanto os defensores do rei ficavam à direita. Dessa postura de horizontalidade ideológica foi que nasceu a denominação de esquerda e direita. Assim, essa utopia igualitária da esquerda já havia sido cogitada por Platão, que pensara a república ideal, que, na sua convicção, não estava fadada a existir, a não ser como tema de discurso. Mas esse ideal metafórico de Platão vem, no curso história, se realizando como ocorreu com a Revolução Francesa, o grande passo inicial do sonho igualitário, sustentado pela ainda nascente esquerda.

* Membro da AML e AIL.