Aureliano Neto*

Há as pessoas que esquecem e há aquelas que erram. Não sei o que pior. Depende das consequências do esquecimento ou do erro. Confesso que ultimamente ando um tanto esquecido. Quantas vezes fico aperreado procurando a chave do carro, ou qualquer outra coisa, sem ter a mínima ideia onde a pus. Outras, não sei onde está o livro que estou lendo. Mas, vejam bem, não é um livro qualquer; é aquele que estou lendo. Procuro em todos os lugares, e nada. É um tormento. Deixo pra lá e vou cuidar da vida. Num dado momento, o livro aparece logo ali, num lugar onde sequer pensei que o havia deixado. Penitencio-me, culpando o tempo. O cérebro já não é o mesmo, reverberam aqueles que querem justificar meus brancos mentais. Não me conformo. Minha cabeça, em passado bem recente, foi uma verdadeira agenda. Guardava tudo. A hora, os minutos e as datas. Guardava versos inteiros de Camões. Não levava para sala de aula apontamentos, a não ser umas reles e irrelevantes anotações. A aula saía da massa cefálica sem grandes atropelos. Bem. Não é preciso dizer: já não faço mais essas estripulias mentais. As aulas são revistas, feitas algumas anotações necessárias e um roteiro a ser seguido. De outro modo, os alunos podem pensar que estão diante de um professor que nada sabe. Felizmente, ainda continuo dando as minhas sentenças em banca. Não deixo para depois. O tempo urge, dizem os mais apressados.
O que me preocupa mesmo não é o meu esquecimento. Consigo ir levando sem grandes atropelos. Carrego comigo, para onde vou, um caderninho de anotações. Vou construindo o texto, na medida em que vou pensando, e as frases vão surgindo de supetão. Anoto-as, com as minhas algaravias, no bloquinho ou no caderninho. Peguei essa mania. É bem recente. Tanto que vejo os filmes transcrevendo as frases que me chamam a atenção. Por esses dias, estava a rever A Cor Púrpura e fiz essa transcrição literal: "Quanto mais as coisas mudam, mais parecem iguais." Nada destoante de nossa realidade. As pessoas são sempre as mesmas: amam e sofrem, quem sabe, desde Adão e Eva. De outra vez, assistindo a outro filme que já não lembro o título, passei para o caderninho essa frase de um dos personagens, atribuída ao escritor William Faulkner, que dela vim a fazeer uso num texto. É a seguinte: "O passado nunca morre. Sequer é passado." Pois é: o passado é o presente inconscientizado. Num outro momento, lendo um cronista, que ficou perdido no esquecimento, fiz esta anotação: "Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão de banco de praça, de ruas vazias, de amor público." Confesso que não sei se foi Veríssimo, o filho. Foi um desses nossos grandes cronistas, não chegando a ser Rubem Braga, muito menos Fernando Sabino ou Paulo Mendes Campos. Tenho apenas uma certeza: retirei esse excerto de uma excelente crônica, na qual o cronista registra a pureza do encontro de dois namorados, a beijarem-se num banco de praça, de ruas vazias, num arroubo idílico de extravasamento público. De tudo, uma outra certeza: já não existem ruas vazias, e os bancos de praça, para prática dessa avassaladora prova de amor, já não existem mais. Se existem, têm outros usuários.
Há um esquecimento que tem me atormentado muito: o pai que esquece o filho em banco de carro. Diz a trágica notícia: "Um bebê de sete meses morreu anteontem, em Divinópolis (a 120km de Belo Horizonte), após ser esquecido pelo pai dentro de um carro por cerca de seis horas no estacionamento de um supermercado, sob forte calor." O pai esquecido levou o filho para o supermercado, esquecendo de deixar a criança com a babá, fato ocorrido às 7h, só vindo a lembrar-se do filho por volta das 13h. O menino socorrido pelos nossos versáteis militares, com os batimentos cardíacos enfraquecidos, não resistiu, vindo a falecer. O pai esquecido se desesperou. Não creio que tenho se livrado do desespero. A trágica morte do filho, esquecido no interior do veículo, num estacionamento de um supermercado, é a punição pelo resto de sua vida. O passado para ele, o pai, sequer será passado, como está na frase acima de Faulkner. Ser-lhe-á um tormento por toda a sua vida. Presente ou futura, se o futuro ainda houver.
O esquecimento e erro. O resultado de ambos pode ter efeitos cruéis. Vejam o que ocorreu com o pai. Também tem o esquecimento daquele marido, que, esquecido, trouxe para casa a nota fiscal do motel. Foi um deus nos acuda. Sem explicação convincente. Pagou pelo esquecimento. Consequência: divórcio. Mas o erro? Há erro erro, e há erro malicioso, fraudulento. O erro erro é perdoado, ou pode ser perdoado. O erro malicioso, não. A garbosa polícia do Paraná, que está investigando a médica Virgínia Helena Soares de Souza no rumoroso caso das mortes na UTI do Hospital Universitário Evangélico, ao fazer a transcrição dos grampos que a incriminam, fez uma troca fraudulenta do verbo "racionar" para "assassinar", deturpando, num pedido de prisão preventiva, o sentido da frase. A frase certa era: "Nós estamos com a cabeça bem tranqüila para racionar, pra tudo, né!" Substituíram, maliciosamente, a palavra "racionar" por "assassinar". Resultado desse fraudulento erro: a investigação está sofrendo do mal da falta credibilidade. Não sei se os senhores já perceberam, praticamente sumiu do noticiário da nossa investigativa mídia. Deixaram o nosso Mengele de saia de lado e estão pedindo a Deus que nossa Yoani Sánchez, a chatíssima blogueira cubana, volte ao Brasil. Pode ser o remédio, ou, quem sabe, outro erro proposital.

aureliano_neto@zipmail.com.br