O mundo está rodando e eu, aqui, meio parado. E, rodando, rodando, as coisas vão se transformando e, na mesma dimensão, a linguagem. Fala-se em plataforma para isso, plataforma para aquilo. E aplicativo pra cá, e aplicativo pra lá. Tanto que o pobre que precisa do pobre e necessário auxílio de emergência, se não fizer uso do aplicativo tal, ou da plataforma tal, vai ter que, no futuro bem próximo, como dizia Stanislaw Ponte Preta, comer capim pela raiz, deitado em berço esplêndido de uma dessas covas de algum dos cemitérios que ficam pela aí (linguagem desatualizada de um dos parentes de Ponte Preta). Mas, distraído como um dos seus primos, vou tentando superar as dificuldades desse novo mundo em que o ser humano se digitaliza a todo instante como se fossem as ficções robóticas que se vê nas telas de TV ou do celular.
Mas deixemos isso pra lá. São coisas da vida. O mundo é mundo, ou se está nele, ou a vida pode se complicar.
No meio dessas novidades, às vezes precisamos nos desatualizar para que possamos nos humanizar. Chamou-me a atenção a luta por direitos trabalhistas dos entregadores de aplicativos. Essas pessoas (ainda bem pessoas,hem?!) que, usando motos ou bicicletas, se deslocam, faça chuva ou sol, pelas nossas ruas e avenidas, para fazer entrega de produtos que são adquiridos por consumidores, que os recebem em suas casas. Esses trabalhadores fizeram um movimento no qual reivindicavam o aumento do valor das taxas pagas pelos aplicativos, como iFood, Uber Eats e outros. O mundo parou de girar e quase desmorona. De um lado, os entendidos que sustentam que não há, nessa espécie de atividade econômica, relação trabalhista, não cabendo a aplicação da CLT; de outro lado – como aqui estou puxando saco desses trabalhadores -, há os que afirmam que os entregadores devem receber proteção da lei, não se tratando de um mero contrato de prestação de serviço. O fato é que o serviço prestado por esses entregadores é controlado pelas plataformas.
Cito o que disse um procurador do trabalho: “Afastar a proteção jurídica sob o argumento de uma liberdade que é, na melhor das hipóteses, reduzida à escolha de quando trabalhar, ignora como as plataformas funcionam. Não devemos aceitar uma versão romanceada da realidade que condena os trabalhadores a um futuro sem dignidade. Se a melhor resposta que oferecemos àqueles que trabalham com fome e não têm onde descansar é ‘você pode escolher o seu horário de trabalho!’, falhamos como sociedade.” Também faço a citação do que afirmou o governador do nosso Estado, Flávio Dino, em entrevista dada a este Jornal O Imparcial, em 30 de junho de 2020, p. 5: “Você tem milhões de pessoas que trabalham nessas plataformas tecnológicas, às vezes sem direito algum. São entregadores trabalhando de bicicleta, correndo de moto, sendo esmagadas pelas taxas fixadas unilateralmente.” E acrescentou: “São pessoas que vivem no século XXI, no que se refere à forma de trabalho, mas no século XVIII, no que se refere ao mundo dos direitos. Eles têm que ter uma lei, direitos. Mas não podem ficar sem direito algum, como se fosse escravo.”
É verdade governador. Mas Vossa Excelência sabe que, acima de qualquer relação de trabalho, há um princípio maior na Constituição Federal que o da dignidade da pessoa humana, que costumeiramente vem sendo desrespeitado pela voracidade do capitalismo. Assim, qualquer atividade laboral hoje é tida e havida como empreendedorismo. Pronto, aceito isso, questão resolvida. Transforma-se em empreendedor o trabalhador desamparado de tudo, enquanto, na outra ponta, está o poder do econômico ganhando muito dinheiro à custa do suor desses obreiros-empreendedores que trabalham dia e noite, sem descanso, expondo-se a todo tipo de tormenta e perigo para ganhar o pão nosso de cada dia.
Dizem: são empreendedores. O presidente da Associação Online to Offline, num texto publicado na Folha, afirmou: “O STJ já reconheceu que ‘tais profissionais atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma’. E a presidente do TST, Maria Cristina Peduzzi, ressaltou, em entrevista concedida no dia 4 de julho, que temos que entender essa nova relação trabalhista com ‘novas lentes’.”
Pois é, meu caro governador, do jeito que a coisa vai, não demorará muito, para que Queiroz seja considerado empreendedor de rachadinha. E turma do gabinete do ódio empreendedora de fake news. Enfim, toda essa confusão midiática passa para conta do empreendedorismo, até porque, como alerta a Min. Peduzzi, tem que se entender essa nova relação trabalhista com “novas lentes”. E o trabalhador, ô! Assume o galhardo rótulo de empreendedor, não escapando disso nem vendedor do cuscuz Ideal.
Membro da AML e AIL.
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