Um musical inesquecível sobre a arte eterna da eterna Elis Regina. Elis, A musical, no Teatro Alfa, em São Paulo. Vale a pena ver tantas vezes. E muito mais vezes. É o canto poético de uma vida. É o peso suave e, por vezes melancólico, da eterna voz de Elis Regina, apelidada por Vinícius de Moraes de Pimentinha, em razão do seu temperamento explosivo, ou da sua inquietude estética de querer sempre mais, sempre o melhor. Assim fora Elis. Dela muito se disse e muito se falou. Muito de mal, como pessoa, talvez por inveja, pela sua obsessão de ser uma artista perfeita. Pequena na estatura. Um gigante no palco. Não deixava almoço pra janta. Dizia o que lhe dava na telha. Doesse a quem doesse. Foi assim desde o começo, quando saiu do Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, e da Rádio Gaúcho, para se projetar, com o seu talento imensurável, para o mundo. A sua interpretação de Fascinação, valsa cantada por tantas vozes, como Francisco Alves, o rei da época, me estremece de êxtase. Um doce canto, numa cadência suave, que amorosamente recita "Os sonhos mais lindos sonhei / De quimeras mil um castelo ergui / E o teu olhar, tonto de emoção / Com sofreguidão mil venturas previ / (...) És fascinação, amor."
1,53m de talento. Interpretação perfeita. Nunca precisou de saltos altos, para chegar às alturas do seu inato preciosismo de criadora de sucessos. A sua voz escandia os versos, com suavidade, sem tropeçar nas notas musicais. Pelo contrário, as notas musicais eram escravas do seu talento. Elis começou imitando Ângela Maria, a sapoti do rádio brasileiro. Mas a Pimentinha percebeu a tempo que tinha talento para muito mais. Não quis ser apenas uma boa imitadora, ou apenas uma cantora a mais, como tantas que viveram e vivem por aí. É ela quem denuncia essa preocupação: "A mim não interessa ser uma boa cantora a mais. Quero usar o dom que a mãe da natureza me deu para diminuir a angústia de alguém. Essa idéia é que pode dar sentido ao meu trabalho." E buscou, com sofreguidão, ensandecida pela genialidade que sabia ter, os caminhos que deram sentido ao seu trabalho, que a fizeram alcançar a estatura ímpar de ser a maior cantora brasileira.
"É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã / É o resto de mato na luz da manhã / São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração." Esse um dos grandes momentos do musical, que mostra o encantador e histórico encontro de Tom e Elis na gravação que fizeram para Águas de Março, o clássico de 1974, que tem o arranjo de César Camargo Mariano, que representa a segunda fase de Elis após o necessário e essencial desencontro com Bôscoli. É pau, é pedra, mas não é o fim do caminho, é promessa de vida de muitas canções. Elis segue em frente. Firme, petulante, senhora de si mesma. De outra forma, não seria Elis. Só, quem sabe, apenas uma boa cantora.
Antes, bem antes, Elis usa todo o seu carisma para, vencendo os cacoetes de Ângela Maria e o modismo dos sucessos momentâneos de Celly Campelo (Banho de lua e etc.), fazer toda uma travessia para se encontrar com os novos talentos: Milton Nascimento (Canção do sal), Ivan Lins (Madalena), Renato Teixeira (Romaria), Fagner, João Bosco, Aldir Blanc (O bêbado e a equilibrista - canção considerada o hino da anistia) e o gênio incompreendido Belchior (Como nossos pais). Aliás, aproveito e recorro ao chavão: todo gênio é incompreendido. No canto de Elis, como na vida e como nossos pais, "Viver é melhor que sonhar / E eu sei que o amor / É uma coisa boa / Mas também sei / Que qualquer canto / É menor do que a vida / De qualquer pessoa..." Mas "Minha dor é perceber / Que apesar de termos / Feito tudo, tudo, tudo / Tudo que fizemos / Ainda somos / Os mesmos e vivemos / Ainda somos / Os mesmos e vivemos / Ainda somos / Os mesmos e vivemos / Como os nossos pais."
Elis, A musical, vai longe. Mostra tudo. Só não, e não se poderia desejar a sua triste inclusão, a tragédia da morte. Fala do canto, das coisas da vida. Do momento de O fino da bossa, em que a irrequieta Pimentinha contracena com o ritmo alucinante, mas de muita brasilidade, de Jair Rodrigues. Foi o salto maior para as grandes conquistas. A sua musicalidade explodiu. Baden, Vinícius, Edu Lobo, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Travessia, Arrastão, Saudosa maloca, Atrás da porta, Upa Neguinho, Adoniran Barbosa, Tom Jobim, Miéle, Bôscoli, Ivan Lins, Milton Nascimento, Paulo César Pinheiro, Zé Keti, Ary Barroso, Lupiscínio Rodrigues. Ah!, que beleza a interpretação de Cadeira vazia. Só Roberto Luna para rivalizar com o charme da Pimentinha. Mas é ela quem registra a marca estética singular de sua genialidade. E suavemente nos excita dizendo: Entra meu amor, fica à vontade e diz com sinceridade o que desejas de mim. Isso numa cadência, como se tivesse passando uma cantada daquelas bem antigas, que exige que solidão seja obrigatoriamente a dois. Ainda bem que, além do seu talento, ficaram Maria Rita, Pedro Camargo Mariano e João Marcelo Bôscoli, e muita saudade, matada nesse talentoso musical, que apresenta Elis, de corpo, alma e na eternidade do seu canto.
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