Aureliano Neto*
Nada de inusitado. Apenas uma constatação da pós-modernidade. São os tempos. Tempos novos. Ou novos tempos. Pois é. Estou no início da leitura de um livro que me foi presenteado pelo meu confrade e amigo Tasso Assunção (A primeira e a última liberdade, de J. Krishnamurti). O autor é mestre da espiritualidade, e, lá para tantas, ao falar sobre o tempo, especificamente a respeito da dissolução instantânea do passado, diz-nos com a sapiência dos grandes pensadores que somos produto do passado. Porém, não do passado cronológico, e sim das experiências, reações, lembranças e tradições acumuladas, do conhecimento acumulado, dos pensamentos, sentimentos e influências armazenadas no subconsciente. E com veemência dos sábios, faz esta enfática afirmação: "A mente é o passado; é o resultado do tempo." Para maioria de nós, o passado pode ser o presente. Pois bem. Ainda estou na leitura desse livro. E ler um livro é como saborear uma dessas nossas comidas tradicionais, temperadas com carinho e amor pela pessoa querida, de preferência a mulher amada. Volto a Machado, já tantas vezes aqui citado, que, sem destoar de Krishnamurti, afirma que o passado é a melhor parte do presente. Isso me leva ao eterno Fernando Pessoa a exortar que há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma de nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. E ressalta os motivos dessa troca das roupas usadas: - É tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
Penso que estou ficando à margem de mim mesmo, embora tenha ousado fazer a travessia. Ainda assim, procuro driblar o tempo: ser atemporal, sem renegar as experiências acumuladas com o passado. Mas fazer a travessia é necessário, sem deixar de ser eu mesmo. Essa talvez seja a verdade de cada um nós que nos liberta do passado, sem renegá-lo.
Dia desses estava no aeroporto, à espera de familiares que chegavam de alguma viagem. Perambulava a esmo pelo saguão. Nada de novo, a não serem lojas de quinquilharias. Olhava-as apenas, ora absorto na técnica do trabalho artesanal de algumas delas, ora pespegando um olhar desinteressado de relance, sem esboçar qualquer entusiasmo. Passava o tempo. Servia essa peregrinação para esquecer o relógio. De vez em quando, dava uma leve bisbilhotada no painel de chegada de aeronaves. Era noite, já entrando pelo dia seguinte. Fui até a lanchonete para tomar um cafezinho. Procurei uma mesa, onde me acomodei. Até aí, o trivial, a rotina da espera.
Numa outra mesa, próxima, quase ao lado, duas jovens conversavam num tête-à-tête, como boas amigas. Não pareciam namoradas, nem amantes, já que apenas se limitavam a conversar. Bebiam cerveja. Fiquei olhando, com alguma curiosidade. Fiz a travessia, própria de bisbilhoteiro, enquanto a aeronave se preparava para o pouso. Cada uma tinha às mãos uma garrafa de cerveja. Não das grandes. Das médias. E bebiam voluptuosamente no gargalo, sem fazer uso de algum recipiente: taça ou de copo.
Fui ao passado. Vesti a roupa usada. Refiz a travessia e voltei para dentro de mim mesmo. Lembrei-me das mulheres antigas que, em público, bebiam com algum recato exigido de uma época que já se foi. Usavam taças ou copos. Beber na boca da garrafa era um ritual do cachaceiro. Figura também que ficou lá no passado. No tempo presente, não há grande diferença de quem bebe cachaça (a bebida genuinamente nacional), a cerveja, o vinho, ou o uísque importado. Beber na boca da garrafa, seja homem ou mulher, até porque todos são iguais, é um modo de transformar ainda mais igual a igualdade. Mas, as duas jovens, bem ao meu lado, sorviam cada gole da boca da garrafa como estivessem a ingerir uma boa talagada de uma dessas nossas tradicionais cachaça. A elegância estava apenas no simples ato de virar a garrafa.
O tempo, a bem da verdade, vem mudando, se não me engano, segundo o cronista Paulo Mendes Campos, desde 1959, quando faz o registro dessas grandes mutações dos costumes, ao escrever uma carta-crônica ao amigo Otto Lara Resende, que se encontrava na Europa e retornava para o Brasil. Entre tantas advertências, Paulinho, como era conhecido no grupo dos mineiros, dizia ao amigo que dera uma louca impressionante: - Antes de mais nada - relatava - nem lhe passe pela cabeça perguntar a um marido pela mulher ou a uma mulher pelo marido. Houve uma troca geral. (...) Há padres sem batina, mulas sem cabeça e generais de pijama. Há cães que têm medo de gatos e gatos com medo de ratos e ratos (isso há demais e pertencem todos ao nosso set social) sem medo de ninguém. Enfim, enfatiza PMC, mudanças de toda sorte e para todos os gostos.
Por isso, não sei por que cargas dágua me detive no exame curioso das jovens a beberem cerveja na boca da garrafa, com a elegância dos antigos cachaceiros, que, saborosamente, entornavam a danada apenas limpando ligeiramente a boca para ingerir com sofreguidão o líquido ardente que descia pela garganta, tendo como resposta imediata o estalar da língua e a tradicional cusparada do grande bebedor. Enfim, somos, de fato, quer se queira ou não, produto do passado. Não escapei desse determinismo.
aureliano_neto@zipmail.com.br
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