“Tenha pena de mim. Vá embora. Ele pode chegar. Vais me prejudicar. Tá na hora!”. Eis a essência poética de Lupe, ou, para quem já não lembra, Lupicínio Rodrigues. Cem anos de imortalidade, cantando as sofrências do amor, as desilusões de amar com toda a força de viver amando sem abrir qualquer exceção aos tormentos das inevitáveis perdas. Como um ourives a cinzelar esses sentimentos, Lupicínio foi, sem desprezar a boemia intensamente vivida, construindo a sua (e nossa) eterna obra. Por isso mesmo, quem há de dizer que quem você está vendo naquela mesa bebendo é o meu querido amor. E repare bem que cada vez que ela fala ilumina mais sala do que a luz do refletor. O cabaré (ah!, que saudade das luzes dos cabarés), ainda assim, se inflama quando ela dança e com a mesma esperança todos lhe põem um olhar. Vocês se amam, diz o atento amigo, e o amor deve ser sagrado e o resto deixa de lado vá construir o seu lar. Mas ela nasceu com o destino da lua – livre para amar e ser amada – pra todos que andam na rua não vai viver só pra mim. Quem há de dizer: o cabaré se inflama quando ela dança, com a esperança de todos os olhares. E disse-me assim: o remorso está me torturando por ter feito a loucura que fiz por um simples prazer fui fazer meu amor infeliz. Ai, esses moços!
Meu primeiro encontro com Lupicínio, esse mago da dor de cotovelo, que expressou os sentimentos mais sublimes e as muitas dores doídas da incompreensão do amor, foi na voz de Roberto Luna. Roberto Luna!? Quem não se lembra de O Relógio, Que Murmurem, Serenata do Adeus, Molambo, Cadeira Vazia e outros grandes sucessos. A canção que me faz lembrar foi Castigo, que Roberto Luna entoava com a sua voz suave e forte, ressaltando a desilusão da mulher decaída que retorna ao braço do antigo amado, que sabia que um dia seria procurado em busca de paz, em que pese o remorso e a saudade. É a filha pródiga que volta, que Lupe destaca, com extrema pulsão poética, em Cadeira Vazia, imortalizada por Elis Regina. Nessa canção, estão a partida e a volta. Por isso mesmo a cadeira vazia. – Entra meu amor fique a vontade / E diz com sinceridade o que desejas de mim / Entra podes entrar a casa é tua / Já que cansaste de viver na rua / E os teus sonhos chegaram ao fim / Eu sofri demais quando partiste / Passei tantas horas tristes / Que nem devo lembrar esse dia / Mais de uma coisa podes ter certeza / O teu lugar aqui na minha mesa / Tua cadeira ainda está vazia / Tu és a filha pródiga / Que volta procurando em minha porta / O que mundo não te deu. Finaliza com a sentença condenatória, embora o vazio da saudade: Voltaste... / Vou te falar de todo coração / Não te darei carinho, nem afeto / Mas pra abrigar podes ocupar meu teto / Pra de alimentar podes comer meu pão. A síntese da dor da partida e o desprezo da volta.
Mas o grande samba-canção de Lupe, o hino da dor de cotovelo, Nervos de aço, nasceu de uma rejeição amorosa. Lupicínio teve muitos amores. Fez canções para todos eles. Para cada amor ou desamor uma canção. Em Nervos de aço, em interpretação definitiva de Paulinho da Viola, está todo o sentimento de dor, retratado na tortura do desencontro: Você sabe o que ter um grande amor / Meu senhor. / Ter loucura por uma mulher / E depois encontrar esse amor, / Nos braços de um tipo qualquer (...) Eu só sinto que quando a vejo / Me dá um desejo de morte ou de dor. A dor da rejeição. Do amar sem ser amado. Isso me traz a lembrança, quando, no Rio de Janeiro, estava eu e um grande amigo num bar, já pela madrugada, de uma sexta pra sábado, com a perspectiva de um novo dia, tomávamos algumas, quando se aproximou de nossa mesa um cidadão, cuja imagem se perdeu no tempo, tendo ficado a história, até hoje não esquecida. Como todo bom adepto do copo, não nos fizemos de rogado a sua companhia. Nada demais. Perguntou-nos o que estávamos bebendo. Respondemos: qualquer coisa. À época, não tínhamos preconceitos etílicos. Qualquer coisa era qualquer coisa. Ele pediu uísque. E do bom. E começou a confessar as suas desventuras amorosas. Casara com a mulher que não amava. E, naquela noite e madrugada, estava bebendo não pelo desamor, mas pela mulher que amava, mas que não tivera a ventura de com ela casar. Crueldade do destino: elas eram irmãs. Casara com a errada. O jeito era beber a mágoa do desacerto amoroso. Não precisa dizer: amanhecemos. O amor ou o desengano do amor tem dessas coisas. Razão para Lupicínio: ter um amor, um grande amor, ter loucura por uma mulher, e não poder amá-la, dá um desejo de morte ou de dor. Lupe soube captar esses desencontros. Em Vingança, a perda extrapola todos os limites da hediondez do fracasso, ao desejar ardentemente o sofrimento da amada que o trocou por outro: – Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar. Já em Volta, Lupicínio canta as noites indormidas, a rolar numa cama e a sentir tantas coisas que a gente não pode explicar quando ama: – Volta! Vem viver outra vez ao meu lado, não consigo dormir sem teu braço, pois meu corpo está acostumado. É a dor suprema do encontro, do amor ansiado, da traição que Lupe, ora deseja a crueldade da vingança, ora, na suavidade de Gal Costa, deseja ardentemente a volta da mulher amada. Ele assim nos disse, para que todos nós façamos a loucura que fazemos. A loucura de amar, e saber que a felicidade não pode ir embora, porque a saudade tem morada no peito de todos nós. Parece cafona, diziam. E é.
Edição Nº 15124
Ela disse-me assim...
Aureliano Neto
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