O tempo de todos nós é construído por canções. Nascemos com a canção alegre do choro da vida e morremos com o som triste da cantiga das lágrimas do fim. Nesse trajeto entre uma ponta e outra, que, na concepção shakespeariana extraída do diálogo de Hamlet e Horácio, o tempo de vida se resume a contar "um", muitas canções sedimentam a nossa andança, como a fixar pontos referenciais para a volta. São uma espécie de fio de Ariadne, a nos possibilitar sair do labirinto da inconsciência. E são tantas as canções!... Não há como delas escapar. Na metáfora rodrigueana, são o sapo de macumba enterrado no nosso inconsciente. Verdade: estando bem dentro de todos nós. De uma hora para outra, surpreendemo-nos solfejando (??!!) repetidamente alguma música, a nos perseguir quase que o dia inteiro. É o grito do inconsciente, que, como se fosse um apito de fábrica - cruel feitor do cumprimento do tempo que ficou lá para bem longe -, a alertar-nos sobre algum fato sepultado lá no passado, porém a dizer-nos que não se encontra tão distante. A canção, que, insistentemente, vem à memória, muitas vezes lembrada pelo refrão, é o fio da lembrança que revela a imagem móvel da eternidade, no dizer de Platão em Timeu, fincada dentro de nós mesmos.
Nos cinemas culturais de São Paulo - não sei se aqui foi exibido -, passou um filme, muito bem produzido e de uma simplicidade quase pueril, mas sem ser chato ou piegas. Ao contrário, estético e enternecedor. As Canções. O desenrolar das cenas, em quadro, relata a história de cada personagem, tendo como leitmotiv uma canção. O entrevistado, sentado numa cadeira, responde as indagações feitas por quem dirige o filme, e, como no programa Ensaio, da Cultura, o inquiridor fica no anonimato. O tema básico, essencial desse filme, é o sentimento humano, expressado nas canções que marcam a vida de cada participante, que, desafinado ou não, canta a música que representa momento importante da sua vida. É um filme que tematiza, essencialmente, o amor. No início, a personagem-entrevistada é uma senhora negra, recatadamente vestida, que relata a sua desventura amorosa, traduzida no samba-canção Último desejo, de Noel Rosa, cuja primeira estrofe simboliza todo o sentimento da quebra da relação amorosa e do não esquecimento: "Nosso amor que eu não esqueço / E que teve o seu começo / Numa festa de São João, / Morre hoje sem foguete, / Sem retrato e sem bilhete, / Sem luar, sem violão." Prossegue o filme, em montagens cênicas comoventes, sendo ouvidas várias outras pessoas, nem sempre caracterizando seus depoimentos interrupção de um relacionamento, mas até mesmo a construção de uma vida amorosa. Ou, ainda, como ocorreu num dos episódios, em que o entrevistado se refere à música Esmeralda, grande sucesso na interpretação de Carlos José, e que lhe ficou como lembrança de sua mãe. E essa lembrança se deu em razão de ser cantada por ela, quando na lida diária com a máquina de costura, a fazer vestidos para noivas.
Em As Canções, de Eduardo Coutinho - esse grande cineasta documentarista, que, por esses dias, perdeu a vida para uma trágica crise psicótica do seu filho, Daniel Coutinho, que o assassinou -, cada lembrança dos entrevistados se associa a uma canção e marca a trilha sonora do sentimento de toda uma vida. Pode-se assim dizer: é um musical, de essencial humanismo poético. Na tela, desfilam o filho que perde o pai, num momento do encontro afetivo. O desencontro de vidas que se amam. A não correspondência do amor, ou a excessiva correspondência. A mãe que é lembrada, porque cantava Esmeralda. O marido que fez a mulher sofrer e que se arrepende, tartamudeando, como um barítono arrependido, as músicas de Silvinho e Waldick. O viúvo, feirante, que não esquece a mulher morta, embora tenha realizado novo casamento. A desamada que, desiludida, encontra o amor eterno. - Gente, eu amo este homem!!!, diz ela, com a ênfase desse sentimento que ora mata, ora vivifica. O retrato em branco e preto (de Chico) que é mote do encontro e do desencontro. Enfim, há um desfile de dramas, cujo enfoque é recheado de ternura. Um documentário centralizado nos afetos correspondidos ou na desilusão.
Eduardo Coutinho, que soube captar esses turbilhões de sentimentos, não percebeu a tragédia que o espreitava. Foi morto a faca pelo seu próprio filho, Daniel Coutinho, que, acometido de uma grave crise psicótica, o assassinou, lesionando ainda a sua mãe, mulher do cineasta. Além de As Canções, Eduardo Coutinho dirigiu o célebre filme Cabra marcado para morrer, sobre a vida e o assassinato de um líder camponês. A trágica perda de Coutinho retira de cena um dos mais lúcidos documentaristas do Brasil, tendo sido, em 2013, homenageado na Festa Literária Internacional de Parati e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Ao saber dessa trágica morte de Eduardo Coutinho, de imediato, como uma motivação catártica a justificar o imponderável, veio-me a mente uma frase lida num romance desses não tão famosos, tendo-a retirado da boca de uma das personagens, na iminência de ser vítima, em potencial, de um assassinato. Diz a frase: "Em meio à vida já a morte nos envolve." Pois é. Por esse imprevisível desfecho, associei a frase ao óbvio: a vida é tão curta, ainda que se viva tanto tempo, já que sempre envolvida pelo limite da sobrenaturalidade da morte.
Eduardo Coutinho nos fez reviver em As Canções todos os sentimentos de muitas vidas, por ter transformado afetos em poemas musicais. E, embora a insensatez da esquizofrenia o tenha matado, a sua arte insiste em ressuscitá-lo, já que o seu legado está acima da crueldade dessa inexplicável tragédia.
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