É tarde. Precisamos despertar. Os poetas precisam despertar. Os músicos precisam despertar. As mães, os pais e os filhos precisam despertar. As famílias unidas ou dilaceradas pelas contradições precisam despertar. A vida precisa ser despertada. É tarde. Devemos ruminar os nossos sonhos, sem desprezar as nossas utopias. Sonhos de amar. Utopia de ser feliz. “Por que andais ansiosos pelo dia de amanhã?”, perguntou o Filho de Deus quando esteve entre nós. Devemos viver o presente e esperar com esperança o futuro. O som tardio da madrugada nos desperta. Dorme-se o sono incompleto. É tarde. O futuro, como o vento forte, que assobia vindo da nossa verdejante mata, está passando. Passou. Pouco sentimos. Somos passados, sonhando o futuro. Os caminhos, por onde caminhamos, estão ornados de flores. São ipês amarelados ou roxos, dispostos em cada viés dessa trilha procelosa. É tarde. Descemos de nossa soberba de sermos apenas nós mesmos, para, sob a sombra escassa dos ipês, apararmos as pétalas em nossas frágeis mãos.
É tarde. Os cinemas ainda estão cheios. Filas para compra das entradas. A ânsia dos jovens inquietos trocando revistas e figurinhas. Cavaleiro Negro. Zorro. Fantasma, o Espírito que Anda. Super-homem. Roy Rogers. Durango Kid. O Almanaque de Mandrake. Quem tem, quem não tem. Dois por um. Um por três. É tarde. Lá vem o bonde apressado, arrastando-se em cada pedaço de trilho, vem com vontade de chegar, para atrapalhar a festa desse improvisado escambo. O sonho logo se desfez. É passado.
É tarde. Lá se vem o tempo para atormentar a vida. Vive-se o futuro. Todos são reféns do futuro. O futuro é o presente em roda de movimento nos impulsionando para o futuro que vem chegando. Não há tempo para o presente. É tarde. Sigamos, enquanto há tempo.
A manhã é de sol. A manhã é de chuva. Chuva fina. Torrencial. Quase sem chuva. É tarde para o sol. É tarde para chuva. É tarde para vida. A prisão é uma sala hermética na qual se respira um ar mecânico, que retira o prazer da naturalidade do oxigênio que inalamos. É tarde. A vida está inatural. Dolorosamente inatural. Vive-se a companhia do silêncio. O silêncio é a palavra não dita. É apenas a vontade de dizer. O silêncio é o inferno em que as almas ficam aprisionadas murmurando a sua dor inaudível. O silêncio é o morto enforcado pelas suas palavras.
É tarde. O rio Doce desapareceu na lama da Samarco. O grande desastre da humanidade. A lama espalhou tetricamente a morte. Um lugar-comum repetido, em todas as vozes, em todas as palavras, em todas as línguas, que rompeu o silêncio, que entristece. Não há volta. Calamidade: rompeu-se impunemente a barragem do Fundão. A vida rompeu-se. Só resta a ressurreição. Quando? É tarde. A resposta é um desafio a despertar nossa indignação, ainda que mínima, pequenina indignação. É tarde. Só Deus criará um novo rio Doce. Ele que fez o mundo. E fez o rio Doce, destruído pela lama inclemente da Samarco. Multas e acordo não mitigarão a dor da morte do rio Doce. É tarde. Choremos as lágrimas das impossibilidades da ressurreição da morte de uma obra divina, soterrada nesse abominável holocausto ambiental.
É tarde. A água, dia a dia, minuto a minuto, segundo a segundo, se transforma aos nossos olhos em um bem em processo de extinção. Os rios morrem de morte morrida ou matados. Somos terroristas ecológicos. São Paulo vive o drama hídrico. Todas as grandes metrópoles vivem essa tragédia. A par de tudo isso, nas ruas, nos bares, nas lanchonetes, nas boates, nos estádios, nas esquinas, há pedaços de corpos, estourados por bombas de suicidas. Corpos em pedaços. Almas em pedaços. Vidas em pedaços. Fé em pedaços. Morte em pedaços. O mundo em pedaços. É tarde. Precisamos despertar e juntar, tantinho por tantinho, todos esses pedaços, para recompor a nossa ânsia de viver com dignidade. Porque senão será tarde.
É tarde. O sol se põe. A noite chega, como sempre chega. Não há chuva. Meros respingos, que não retiram o piscar incessante das estrelas. Os mananciais secam. A vida seca. O Semiárido precisa do rio São Francisco. E o rio São Francisco vai bater no “mei” do mar... Como canta o sertanejo. Assim como todos nós cantaremos, porque é tarde e precisamos despertar para o sentido da vida. E o sentido da vida é simplesmente viver. Que não seja tarde!
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