ENEM 2014. Mais de quinhentos zeros na redação. Bem, quinhentos e vinte e nove mil candidatos zeraram a redação, cujo tema foi “Publicidade Infantil no Brasil”. E mais: seis milhões, quinhentos e noventa e três mil e quinhentos e sessenta e cinco estudantes fizeram a prova. O índice de zero na redação provoca enxurrada (ou enchurrada, será? – engraçado, havia grafado neste parêntese a palavra com ch e o computador fez a alteração, de forma autoritária, para x, sem fazer-me uma prévia consulta) de questionamentos. Vêm as perguntas: culpa do computador, que sabe tudo, retirando a responsabilidade do aluno ao fazer as correções, sem dar quaisquer explicações? É do ensino? É da escola? Dos professores? É da internet, onde as pessoas – jovens, adultos ou velhos – estão encravados como sapo de macumba? Ou da família, que não mais tem tempo para ensinar, como já o fizera? Enfim, é a falta de leitura? São indagações que nos desafiam a pensar. E pensar muito, deixando de lado as coisas pequenas da política eleitoreira, para pensar-se o Brasil. A sociedade precisa ser pensada e repensada, em todas as suas dimensões. De outro modo, estacionamos. A responsabilidade é nossa também, e não apenas do governo.
Quando estudei, e fiz o primário no Grupo Escolar Sotero dos Reis, bem em frente à Igreja São Pantaleão, em São Luís, as aulas, sob a batuta de uma só professora (professora Adelaide, professora Nóssia, professora Maria da Cunha ou de Lourdes, professora Nila e outras), começavam por volta das treze horas e ia até as cinco da tarde. Estudava-se tudo, com absoluta disciplina e respeito. Mais ou menos sob o sistema da pedagogia antiga, hoje felizmente suprimida: escreveu não leu, pau comeu. Aprendia-se muito, de gramática a ciências. Muitos aprenderam. Muitos se formaram. Muitos, que nomearam o estudo como fundamento de vida, saíram de uma pobreza sofrida para viver uma vida melhor, à custa exclusivamente dos ensinamentos dessas professoras, do sistema educacional ainda que precário da época, dos livros, difíceis, senão impossíveis, de serem adquiridos, e dos estudos, que eram acompanhados pela família. Aprendia-se fazer bilhete, carta, telegrama, descrição das cenas de um quadro que era afixado sobre a lousa (depois, quadro-negro) e redação, desenvolvida com base num tema dos mais anódinos, normalmente uma máxima popular, como amor com amor se paga, quem dá ao pobre empresta a Deus. Tudo isso fundamental para quem quisesse seguir carreira e entrar para uma das nossas faculdades, que não eram tantas. Ou, ainda, servia de prévia, como teste fatal para o sucesso no exame de admissão para ingressar no Liceu Maranhense.
As coisas já não estão bem assim. E uma das causas é a escassez da leitura. Mas a leitura dos bons autores, porque de tudo decorre uma verdade quase absoluta: ninguém consegue escrever sem ler. Todos os grandes escritores (ou mesmo os razoáveis), sem exceção, leram muito. Atualmente não há justificativa aceitável para não se ler. Há livrarias. Há bancas de revistas que vendem, a preço popular, livros clássicos. As escolas têm excelentes bibliotecas. No meu tempo – e lá vem o execrável “no meu tempo” – não havia livrarias e muito menos essa overdose de bancas de revistas, que vendem de tudo, incluindo livros de bolso. Quando não driblava o bonde (às vezes, pagava a passagem, é verdade!), caminhava longas caminhadas para ter acesso à Biblioteca Pública na Praça Deodoro. Ou, saindo do Liceu, dava uma parada obrigatória para fazer algum estudo ou ler. Os livros, quando passei a ganhar algum dinheiro como linotipista, comprava-os por reembolso preenchendo os cupons da revista O Cruzeiro. Meses depois, chegava o comunicado dos Correios. Se tivesse dinheiro, ótimo; se não, ficava aguardando o momento oportuno. Hoje, nutro um fetiche danado por livros. Acho até que vou procurar um psiquiatra. As editoras lamentarão a perda desse comprador e leitor compulsivo.
Nessa confusão dos mais de quinhentos mil zeros, algumas conclusões me chamaram a atenção. Os jovens estudantes estão trocando mau por mal, sob por sobre, geito (novamente o computador insistente fez a troca do g pelo j) por jeito, mesa por meza, dir-lhe-ia por diria-lhe (esta com a ajuda de alguns jornais, que já não têm mais revisor), apreço por apresso, além de pressa por preça. Se não se sabe escrever o idioma culto, ou não tão culto, ler deve ser um desastre com vítimas fatais. É o mesmo que comer sem digerir, sem sentir o sabor da comida gostosa, engolindo-a. Numa das minhas salas de aula, tive a ousadia de perguntar quantos livros os alunos liam por mês. A resposta foi de uma mudez total. E por ano? Um ali e outro acolá fizeram alguma referência positiva, tipo Diário do Banana, ou coisa que o valha.
Muitos manifestaram a sua repulsa pelos zeros. Arnaldo Niskier foi um deles. Escreveu com raiva: Vergonha Nacional. O outro: Zuenir Ventura (Alguém mais merece zero), de cujo texto retiro esta passagem: “Salta aos olhos o uso incorreto de letras como em ‘seje’ ou em ‘meza’, por exemplo. Outro dia, reclamei de um erro assim, e a pessoa com quem me correspondia alegou: ‘É a preça’.” Pois é, termino, o quanto antes. E Deus me proteja de toda essa ‘preça’. Com licença dessa (mal) dita palavra.
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