Acordei com esse questionamento. Sei. E como sei. Quem, por acaso, me lê, nada tem a ver com as minhas atrozes dúvidas. Mas soube – e esse fato político foi divulgado ufanisticamente pela mídia – que o PMDB, velho companheiro de guerra do PT, e o partido da coalizão que mais usufruiu das benesses do governo Dilma, abandonou o barco, que, dizem, com toda a ênfase do Bonner, porta-voz das lamúrias do Moro, está à deriva, no caminho quase sem volta para o impedimento da presidenta Dilma. E aí me veio a dúvida cruel, como consequência lógica de que o vice é do PMDB e faz parte do governo, em que pese a sua carta com sabor de samba-canção: e o Temer não renunciou? Sem ter uma resposta que atendesse essa curiosidade momentânea, a dúvida continua, já que me deparo com uma foto, publicada em meia página do jornal O Globo, edição do dia 30 de março, sob o título Rompimento a jato, exibindo as figuras risonhas de Romero Jucá e do notório deputado Eduardo Cunha, com os braços entusiasticamente levantados, ao lado de outros proeminentes do partido. Talvez a minha dúvida da renúncia ou não seja um efeito negativo da minha ingenuidade em política, uma vez que Romero Jucá, senador que exerceu ou exercia liderança do governo, por esses recentes dias, defendia, com veemência, o governo Lula e o governo Dilma.
Míriam Leitão, colunista que nunca foi do meu agrado, na mesma edição de O Globo, caderno Economia, p. 20, como não tem nada de ingênua, faz este preciso comentário: “O fato de ser o senador Romero Jucá a comandar a reunião do PMDB que rompeu com o governo tornou a cena ainda mais caricata. Jucá foi líder dos governos FHC, Lula e Dilma. Ser governista é a sua natureza, assim como a do partido. Para piorar, sentado à mesa, estava o deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados. Em nome de que ideias se reúne o PMDB?” Resposta simples: se Temer, que é o governo, desde o primeiro mandato da presidenta, também não rompe renunciando ao mandato, o impeachment passa a ser uma realidade objetiva, com crime ou sem crime de responsabilidade, e, como decorrência, se terá não um golpe armado, de deposição por força militar, mas um golpe de natureza eminentemente política. Hélio Schwartsman, na sua coluna na Folha de São Paulo, edição de 30 de março, p. A2, Opinião, conclui que “se Dilma de fato cair, terá caído não porque perpetrou crimes monstruosos – até pode tê-los cometido, mas isso não está em questão – ou porque foi vítima de um golpe, mas mais simplesmente porque perdeu a base política”. Ou seja: o desembarque do PMDB expressa, na verdade, o início da execução do golpe político, com a participação de vários atores, entre os quais o escorregadio vice-presidente Temer.
Por essas e outras, é que dizem os mais exaltados que política tem muito de sem-vergonhice (99,9%) e muito mais de traição (100%). “Virtudes” essas que nada têm a ver com jogo de cintura ou esperteza, ao ser jogado o jogo político, mas muito em comum com a total ausência de ética. Para constatar esses percentuais, que denotam uma estatística imaginária, porém real, basta fazer-se a relação com os fatos ora amplamente divulgados pela mídia ufanística, pois, entre traição e sem-vergonhice, não há fronteiras visíveis. Ouça-se, ainda, constrangido o discurso de Romero Jucá. Dá pena. Ou do deputado Paulinho da Força, falando sobre corrupção. Logo ele, processado por improbidade. Olhem que não estou incluindo Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, especialista em várias delinquências, que comandará o processo de impeachment e será o sucessor de Temer.
Pense-se que, por detrás de todo esse processo de destituição de Dilma, está a poderosa Fiesp, com a ostensiva participação das corporações midiáticas, além do conservadorismo reacionário de direita. A classe política, como ocorreu em 1964, mais uma vez, será apenas fantoche, ou mais precisamente, bonequinho manipulado por esses grupos conservadores. Nada mais. Essa é uma brutal realidade que se delineará a partir do impedimento definitivo da presidenta. Ainda assim há vozes que reverberam a resistência democrática. Manifesto de artistas e um ou outro jornalista que se posiciona de forma coerente, examinando os fatos do ponto de vista da legalidade. O ministro do STF Marco Aurélio Mello, contrariando alguns de seus pares da Corte Suprema entende, e deu entrevista a esse respeito, que o afastamento da presidenta sem crime de responsabilidade pode configurar um golpe, ressaltando que “se não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento, esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como golpe”. E disse mais: o Supremo, nesse caso, pode examinar o mérito, porquanto “o Judiciário é a última trincheira da cidadania”. Já o ministro Luís Roberto Barroso afirma, também em entrevista, que o Supremo não tem a intenção de fazer exame de mérito, porém ressalva que a Constituição e as normas devem ser respeitadas. O que não se pode é confundir o fato político, que não tem tipicidade para o impeachment, com o fato jurídico, que deve ter tipicidade. Uma certeza: por força da segurança jurídica, a retórica de uma denúncia jamais pode substituir o vazio probatório. De outro modo, o fato é meramente político, sem ser jurídico. E é golpe, como afirma o ministro Marco Aurélio.
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