Os parlamentares de 1988, ao elaborarem a Constituição Federal, promulgada pela Assembleia Constituinte, presidida pelo deputado Ulysses Guimarães, tiveram a preocupação de reservar um capítulo para tratar especificamente sobre a segurança pública. Refiro-me ao Capítulo III do Título V, que contempla a defesa do Estado e das instituições democráticas. Nesse capítulo, define a Constituição brasileira quais os órgãos da segurança pública, ressaltando que “é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art. 144).
Para o que vem ocorrendo no Brasil inteiro e, notadamente, em nosso Estado, interessa o exercício das polícias Civil e Militar. A Polícia Federal tem atribuições próprias, delimitadas a partir da Carta Republicana e em leis especiais, além de fixações jurisprudenciais emanadas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, não cabendo aqui o seu exame.
A Polícia Civil tem como atribuição o exercício de polícia judiciária no âmbito estadual. Compete-lhe a apuração de infrações penais (crimes e contravenções), com as exceções previstas em lei. Possui competência residual, tendo uma função repressiva, uma vez que atua após a consumação do fato delituoso, através da instauração do respectivo inquérito, que se constitui em peça investigatória.
À Polícia Militar cabe efetuar o patrulhamento ostensivo/preventivo, para preservação da ordem pública. Mas também vem exercendo outras funções, ao participar ativamente da integração das comunidades menos favorecidas, com finalidade cidadã.
Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, III, CF) é a dignidade da pessoa humana. Isso a nos impor que esse valor é a fonte de todos os direitos fundamentais e, portanto, de toda a ordem jurídica, limitando a atividade do Estado ao seu absoluto respeito. Tanto que, no Estado Democrático de Direito, como regra sagrada, vige a plena e total obediência aos denominados direitos e garantias individuais e coletivos, que se traduzem nos direitos humanos, assim não podendo o Estado (contra o qual esses direitos são impostos) desconsiderá-los ou suprimi-los.
Dito tudo isso, parte-se de uma afirmação peremptória: a polícia brasileira, e, especificamente, a do Maranhão, está matando muito. Não sei se em excesso. Como, do mesmo modo, não sei se todas essas mortes, que vêm ocorrendo, segundo divulgações da mídia, estão acobertadas pelas excludentes da antijuricidade, previstas no art. 23 do Código Penal: o estrito cumprimento do dever legal (inciso III) e a legítima defesa (inciso II), haja vista que as notícias insistentes narram sempre a ocorrência de um confronto entre o infrator, ou infratores, denominados de “bandidos”, e integrantes da polícia. Por exemplo: “Na noite de ontem, um homem disparou três tiros contra o 13º BPM, em Raposa, e tentou fugir. Foi perseguido pela polícia e morto após troca de tiros.” Outro: “Quatro bandidos, entre eles dois adolescentes, todos moradores na área de São José de Ribamar, ao serem abordados, dispararam contra os militares; um dos mortos, segundo a polícia, teve participação direta no caso (morte do sargento da PM).” Há sempre o confronto, e há sempre mortes. A exceção é a prisão. Mata-se muito e prende-se pouco. A indagação que se impõe é: o Ministério Público Estadual está participando desses inquéritos, ou estão sendo feitos apenas pela Corregedoria da Polícia? Motivo: há necessidade de que todas essas justificativas descriminantes sejam apuradas com total isenção. De outro modo, está se construindo no Brasil e, especialmente, no Maranhão, uma polícia que persegue, julga e aplica a pena de morte. É essa polícia que nós queremos? Se for, tudo bem. Às favas a Constituição Federal e todas as nossas leis.
Não se quer negar que vivemos grave momento crítico de prevalência da violência, que, entretanto, não pode ser combatida pelo paradigma da violência. Também não se nega que policiais estão sendo assassinados. Alguns em serviço; outros no exercício de atividades paralelas, como segurança privada. Todavia, em 2013, segundo a Anistia Internacional no Brasil, as polícias brasileiras mataram em serviço, em nome do Estado, portanto em nosso nome, 11.197 cidadãos, o equivalente ao que os policiais dos EUA mataram em trinta anos. É um número surpreendente e que exige questionar-se a finalidade da polícia, nos limites do nosso ordenamento jurídico. Não podemos continuar a fabricar “Amarildos”, ou vítimas como Haíssa Mota, estudante morta em 22 de agosto de 2014, porque o seu veículo ignorou o sinal dos policiais. Ou, ainda, Hanry Siqueira, assassinado em 21 de novembro de 2002, aos 16 anos de idade, tendo o caso sido registrado como auto de resistência, lavrado após um suposto confronto com a Polícia Militar do RJ. Depois, feita a apuração, fora apenas uma criminosa execução policial. Por isso e por outras razões, a pergunta: é essa a polícia que a sociedade brasileira quer? O MP e a OAB, que têm sempre lutado pela legalidade, além de cada um de nós, podem e devem dar essa resposta. E antes que seja tarde.
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