Aureliano Neto*

Não tenho a pretensão de transformar este espaço numa tribuna jurídica, e muito menos política, em que os assuntos amenos, de mero diletantismo, portanto mais estéticos que técnicos, venham dar lugar a filigranas, próprias dos conflitos que assolam os nossos tribunais, e que já nos enchem a paciência todos os dias no noticiário de nossa mídia tupiniquim. Nem quero gerar desse tema um debate, às vezes inconsequente. Mas, se vier a ocorrer, não resta outra alternativa a não ser enfrentá-lo. Uma das minhas virtudes é não ter coragem, o que leva à contrapartida de não ter medo, uma vez que coragem e medo são antípodas que se vinculam e se intercompletam. Ninguém é totalmente medroso, que não tenha algum resquício de coragem. Amácio Mazzaropi, mais conhecido pelo segundo nome, enfrentou muitos desafios na vida. Saiu do circo para se projetar no cinema nacional. Porém, tinha medo de viajar de avião. As suas excursões eram feitas de carro e de navio. De avião, nunca. Já Marighella, nosso guerrilheiro baiano, que fez da resistência à ditadura militar a marca que o põe em definitivo na história desse Brasil de tantos brasis, tendo também arquitetado a luta armada, preferia morrer - e foi a sua opção - a ser torturado. Quando preso na Ilha Grande, retiraram-lhe, com todos os requintes da mais cruel crueldade, à moda Fleury, todas as unhas. De anestésico só o alicate e, a sangue frio, os torturadores extirparam-lhe as unhas, além de passar-lhe o maçarico na sola dos pés. Para constatar, vejam o esplêndido documentário, que está passando em nossos cinemas, que traça o perfil de um homem que fez da luta pela igualdade e liberdade o roteiro de sua vida.
Machado, o sempre Machado, e de Assis, ao fazer uma paródia do provérbio alhos com bugalhos, diz que convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã. Pois é. Algumas decisões dadas no STJ, especificamente a Terceira Turma, e seguidas alhures, têm levado as pessoas a confundirem alhos com bugalhos, isto é, estão a misturar o prático com o ideológico, prevalecendo, infelizmente, este último.
Vejamos: parte da ementa do Recurso Especial n.º 936.574, da relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, diz, de forma resumida, como dela adviesse um entendimento definitivo: "O requerimento administrativo prévio constitui requisito essencial para o ingresso da demanda judicial." Pronto, parece (bugalhos!) que se estabeleceu uma inexpugnável condição de procedibilidade do pedido de pagamento do benefício do seguro DPVAT. O que isso quer dizer? Que o beneficiário, antes de ajuizar a demanda, deve fazer o requerimento administrativo para a seguradora, ou para quem a represente. Ocorre que, embora a Terceira Turma manifeste a priori esse entendimento, a questão, nesse ponto do conflito, não foi decidida, em vista do óbice da Súmula 7/STJ, que veda análise de prova do processo, ainda com o acréscimo de que a discussão a respeito da aplicação do princípio da inafastabilidade da jurisdição foge do controle daquela Corte. Portanto, do que se conclui, a controvérsia ainda está em aberto, não se podendo acolher essa conclusão como favas contadas. De outro modo, podem-se confundir alhos com bugalhos, em detrimento do jurisdicionado, beneficiário de um seguro obrigatório, de profunda natureza social, criado para proteger o mais carente, pois o rico pouco dele necessita, indo, em caso de ser vítima de acidente com veículo automotor, buscar, por via judicial, outros valores indenizatórios.
Demais, nos Juizados há dois ritos: o pré-processual e o processual. O interesse, a resistência, se manifesta no momento da conciliação. Havendo acordo, ótimo; não havendo, exsurge o interesse processual do autor, para fase seguinte. Não há que se confundir com o CPC. De outra forma, rasgue-se a Lei 9.099/95.
Mas sem eruditizar a questão, é bom fazer-se referência ao jurista Sergio Cavalieri Filho que, trocando em miúdos, afirma que esse seguro obrigatório - ao meu sentir verdadeiro tributo - deixou de ser caracterizado como de responsabilidade civil do proprietário, para se transformar em um seguro social em que o segurado é indeterminado, só se tornando conhecido quando da ocorrência do sinistro, momento em assume a condição de vítima do acidente automobilístico. O proprietário, na sua concepção (e é verdade!) não é o segurado, mas estipulante em favor de terceiro (v. In Guia Prático do Seguro DPVAT, p. 182, de Marcelo de Oliveira Amorim). Com efeito, o DPVAT exerce funções sociais precípuas: ampara a vítima (beneficiária ela própria ou seus familiares) dos acidentes de trânsito em todo o território nacional e contribui para saúde pública, porquanto parte de sua arrecadação é destinada para o Fundo Nacional de Saúde. Inexige comprovação de culpa. Um exemplo mórbido: se alguém, em desespero, quiser suicidar-se fazendo uso de um veículo e alcançando o seu trágico intento, os seus herdeiros, como dispõe o art. 4.º da Lei n.º 6.194/74, modificada, num cruel retrocesso legislativo, pela Lei n.º 11.482/2007, receberão o pagamento do interesse segurado.
Alguns, infelizmente (entre esses as seguradoras) odeiam o seguro DPVAT, sobretudo quando o beneficiário busca os seus direitos para recebê-lo. Obrigatório, para pagar, nem tanto ódio. Restam as lutas judiciais. Alguns magistrados têm extinguido o processo, sem resolução do mérito, se o beneficiário tiver a audácia de ajuizar a demanda fora do seu domicílio, ainda que a ação seja aforada em Juizado Especial, que tem uma lei de rito instituída para facilitar o acesso à justiça, a fixar ampla previsão de foro no art. 4.º, que faculta a escolha, "a critério do autor", do local onde a parte reclamada mantenha, até mesmo, sucursal ou escritório. É a regra. Está na lei. Já o Rio Grande do Sul criou, para evitar a demanda, negando a jurisdição - isso sim uma afronta à Constituição - o subterfúgio da infringência ao juízo natural, como se o autor da demanda, ao exercer o seu direito de ação, estivesse a criar um juízo ou tribunal de exceção. Misturam-se, mais uma vez, alhos com bugalhos, em detrimento ao amplo exercício da cidadania. Só mesmo recorrendo ao poeta condoreiro: Meu Deus, meu Deus, onde estás que não responde?

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