Aureliano Neto*

Li recentemente um filósofo (Cortella), que afirma que não nascemos prontos e acabados; de outro modo, estando satisfeito consigo mesmo, é considerar-se terminado. Mais adiante, dando seguimento às suas reflexões, enfatiza que somos seres de insatisfação, portanto ambiciosos, não no sentido depreciativo da ganância, mas de perseguir e buscar alguma coisa para autossatisfazer-nos. E em sentença que atravessou todas as fronteiras do mundo, a existencialista Simone de Beauvoir cunhou a frase em que diz que não se nasce mulher, torna-se mulher, num processo de transformação contínuo, sendo esta uma das características do ser humano, que tem como outro fundamento de sua existência a temporalidade. Por isso mesmo, Beauvoir, com determinismo existencialista, ressalta que "viver é envelhecer, nada mais".
Para que não se caia numa monotonia existencial, não estando satisfeitos com o que somos, todos deveriam ser doces, como o pão que nos é servido no altar sagrado do amor e da solidariedade, e amargos, como se tivéssemos que absorver todos os sofrimentos do mundo. Novos ou velhos, a doçura e a amargura devem balizar a nossa temporalidade existencial; não devemos guardar as nossas virtudes, como se tivéssemos que poupar para assegurar a velhice ou a salvação eterna sem grandes atropelos, já que quem alcança esse último estágio da vida, fatalmente chegará ao seu final. Nossas virtudes devem contaminar, como um bom vírus, a todos; e as nossas dores, que são construídas pela solidariedade, devotadas aos que sofrem. Ensina a sabedoria do povo que o pão que se guarda, endurece o coração.
Então, é preciso ter a delicadeza de contemplar as estrelas. Tanto o céu estrelado, visto com a paixão poética enterrada em cada um nós, quanto a chuva torrencial que desaba e nos inunda, são mistérios e dádivas que banham de alegria, ternura e dor a natureza, mas necessários para a vida. Sem eles a vida perde o brilho, esmaece-se; ao mesmo tempo, num paradoxo, saciam a nossa fome, contribuindo para o banquete de nossa sobrevivência.
Como nos entristece ver a mão estendida da carência! Nesse gesto extremo está a dor, que nos desafia. Para longe o silêncio conformista daqueles que dão a esmola, mas se distanciam de qualquer compromisso.
A doçura e a amargura nos desafiam a enfrentar essa cruel inércia do descompromissado.
Nosso corpo físico exige vida para que sejam fortalecidos o corpo e a alma dos que sofrem. Não é o corpo apenas o adereço estranho da alma. Os dois se completam, num processo sinérgico que se propaga no curso de toda a vida. Não se trata de um argumento de teor religioso, mas de fundo vital, sem estar vinculado a crenças deístas ou ateístas. Longe, bem longe dessa controvérsia.
Todavia, em determinado momento de sua pregação, Jesus, quando sentiu o temor daqueles que o seguiam, exortou peremptoriamente: "Não tenha medo; tenha fé." A fé em mover os obstáculos, em que pesem os que creem tão só nas possibilidades do fracasso, é que faz com que as montanhas sejam removidas. Por isso, o ter fé, no sentido cristão, ou mesmo no sentido humanístico do seu significado, cria todas as condições na implementação das nossas doçuras e no arredamento de nossas amarguras.
Penso, logo existo (=cogito ergo sun), afirmou Descartes. Nada obstante esse dualismo cartesiano, não existimos apenas porque pensamos que existimos. É certo, não há dúvida: pensamos e existimos. Porém, a verdadeira existência está no relacionamento. Existimos efetivamente, na medida em que nos relacionamos. Afirma um outro filósofo, contrapondo-se ao racionalismo cartesiano de René Descartes: "Só existimos no relacionamento, pois sem ele a existência não tem sentido." Antes, proferira o ensinamento de que a vida é uma experiência no relacionamento, razão pela qual não se pode viver isolado, já que a vida é relacionamento, e relacionamento é ação. Esse relacionamento implica intimidade com as coisas e com as ideias. Ou seja: não é um relacionamento descompromissado. Assim, adverte o filósofo, existimos porque nos relacionamos, e a falta da compreensão do relacionamento é que causa o conflito.
Doces e amargos, traçamos toda uma trajetória humana de buscar e compreender o outro, seja o amigo ou mesmo o inimigo, seja o parente mais próximo ou distante. Servimos o pão da solidariedade, ou nos amarguramos quando encontramos a dificuldade intransponível de convidar todos,carentes ou não, para a mesa da partilha. Ainda por esses dias, entrava numa padaria, mistura de lanchonete, restaurante e panificadora, e, na porta, sob os respingos grossos da chuva e do vento frio, estava um homem a tremer que estendia a mão da carência. - Dê-me de comer, suplicava com os olhos. Tive que ser doce para amenizar a amargura que me invadiu. Pensei: - São tantos, que nos convocam a sair o isolamento para que construamos a ponte do relacionamento e transformemos a vida num permanente existir.

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