Substantivo cruel, a atormentar a todos nós. Mas, mesmo assim, clama o ditado popular: quem não deve, não teme. E quem deve, teme o quê?! Há toda espécie de dívida. Dívida em dinheiro, a mais comum, desde que inventaram esse bendito ou maldito instrumento de troca. E já se vão alguns milhares de anos. Dizem até que a história da dívida é a história do dinheiro. Mas há controvérsias, como rebate o bordão do humorista, ainda citado por aí afora. A dívida, afirmam outros, vem desde o escambo. Pois bem. Esse debate mereceria um tratado a respeito. O melhor é deixar pra lá. Dívida é dívida. Reitero, sem expressar qualquer esgar (lembrando Nelson Rodrigues) de espanto: há várias espécies de dívida. Dívida de jogo. Dívida de mesa de bar. Dívida de amor. Dívida do devedor contumaz e do devedor de ocasião. Dívida de quem quer dever e dívida de quem não tem outra alternativa, e o jeito mesmo é fazer dívida. Dívida de condomínio, de IPVA e de IPTU. Estas nos azucrinam mensal e anualmente. Não pagando, o pau canta. Dívida de satisfação e, a pior delas, penso eu aqui deste espaço, dívida de gratidão. Impagável. Ou melhor: por mais que se pague, continuamos devedores. Ah!, ia esquecendo, também há dívida de rico e dívida de pobre. Falo destas últimas logo em seguida.
Não são minhas as palavras, porém fazem parte da história da dívida. Recorrendo a Gilmar Mendes, o nosso tucano ministro do STF, “estou a ler” um livro, cujo título é Dívida, de David Graeber, com um monte de páginas (umas setecentas), de interessante leitura. Relata Graeber, para fazer a diferença entre o devedor rico e o devedor pobre: “Ora, é verdade que, ao longo da história, certos tipos de dívidas e certos tipos de devedores sempre foram tratados de maneira diferente. Nos anos 1720, uma das descobertas que mais escandalizaram o povo britânico, quando as condições das prisões em que se encarceravam os devedores foram expostas na imprensa popular, foi o fato de essas prisões serem divididas em dois setores. Os presos aristocratas, que muitas vezes consideravam a última moda passar uma curta estada nas prisões de Fleet ou Marshalsea, tinham jantares regados a vinho, servidos por criados uniformizados, e podiam receber visitas frequentes de prostitutas. No ‘setor comum’, devedores pobres eram agrilhoados juntos em celas minúsculas, ‘cobertos de sujeiras e bichos’, como nos diz um relato, ‘e sofriam impiedosamente até morrer de fome e febre tifoide’.”
Se trouxermos isso para o mundo de nossos tempos e para uma outra situação, não tão dessemelhante, os Estados Unidos são os grandes devedores aristocráticos. Devem e não pagam. A pobre da Grécia, pelo contrário, tem que cumprir as imposições dos países europeus, sacrificando a vida do seu povo, porque a sua dívida tem ser paga, sob pena de sofrer retaliações as mais drásticas. Invade-se a soberania de um Estado e estabelece-se uma servidão por dívida que alguém fez e que povo sofredor não sabe quem é o responsável.
Mas isso é questão que envolve política internacional. E alguns dirão, do alto do seu descompromisso ou da sua alienação: nada temos a ver com isso. É, quem sabe, talvez sim, talvez não. Ainda assim, uma necessária advertência: não os iludamos. Quem paga é o pobre; o rico continua cada vez mais rico. Vejam os balanços bimestrais ou trimestrais dos bancos. Só lucro, que é a única finalidade do emprestador do dinheiro. Querem saber de uma coisa? Vou fazer um cochicho no ouvido de quem me lê. O rico, quando não paga a dívida, a culpa é da crise. Negocia com valores vantajosos, porque, quando deve, são valores que só rico pode dever. O pobre, quando não paga, descumpriu o contrato (e contrato tem ser cumprido, afirmam peremptoriamente os mais ortodoxos), pouco importando se leonino, e recebe a qualificação de caloteiro. E o pior: não pode nem discutir na Justiça o seu débito, porque entra na lista negra e sofre graves retaliações do poderoso credor.
Em O Mercador de Veneza, monumental peça de Shakespeare, é exposta a crueldade da dívida, envolvendo Bassânio, que pediu o empréstimo, Shylock, que o concedeu, e Antônio, amigo do devedor, que prestou a fiança e se responsabilizou em garantir o pagamento. Em caso do não pagamento, Shylock, na insânia vingativa, retiraria uma libra de carne do corpo de Antônio. A questão foi ao tribunal. Antônio, defendido por Pórcia, mulher de Bassânio, interpreta o contrato no sentido de que carne do devedor seria retirada, como pagamento da dívida, mas sem que houvesse derramamento de sangue, sob pena de o credor receber graves sanções patrimoniais. O credor cruel desiste e aceita receber o débito em dinheiro. No mundo de nossos tempos, continua a praguejar os Shylocks, credores exigentes e cruéis, que, amparados no manto de um contrato impositivo, levam os seus devedores a uma servidão, ofensiva à dignidade humana.
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