Dia 18 de março, com o tempo bem nublado e alguns leves respingos de chuva, fortemente bocejando, fui até a sacada. Não bem uma sacada, apenas uma puxadinha, onde se dá uma rápida espichada do pescoço para chamar o vendedor de cuscuz, que passa matinalmente anunciando o saboroso e tradicional quitute. Os dois estavam lá na beirada do prédio de frente. Não demonstravam intimidade. Mas, bem próximos, como se fossem grandes amigos, saltitavam juntos, a uma pequena distância. Eram dois pombos, ou um pombo e uma pomba. Ou duas pombas. Não há como se saber a diferença entre o macho e a fêmea, até porque usam a mesma plumagem de cor cinza, com pequenas distinções cromáticas. São grandes reprodutores, multiplicando-se em pouco tempo, em razão da facilidade que têm de acasalarem-se em larga escala. São aves boas. Alguns os criam em pombais, alimentando-as com o amor de quem se dedica, como bom franciscano, aos animais. Abrigam em suas penas uma fauna de agressivos parasitas. Mas, em que pesem alguns predicativos nada alentadores, pareciam pacíficos e alegres, razão pela qual centrei o meu olhar para os seus saltitantes movimentos na beira do telhado. Depois, desceram para um ponto mais em baixo. E continuaram juntos, com demonstração de alegria, indo para um lado e para outro. Dois amigos? Um amigo e uma amiga? Ou duas amigas? Ou ainda um casal de namorados? A tentar aconchegar-se para dar início a uma família e contribuir para multiplicação da espécie. Nesse primeiro contato visual, nada pude deduzir. Não consegui ler os seus pensamentos, para confirmar uma pesquisa recente, de 2017, da Universidade de Iowa, que concluiu que os pombos são dotados de pensamentos complexos, porquanto possuidores da noção de espaço e tempo. São aves urbanas. Adoram cidades. E as pessoas mais generosas gostam de dar milho aos pombos. Nesta manhã, ainda que nublada, os dois desceram e vieram até ao chão. Saíram catando alimentos em bicadas esparsas, aqui e acolá. Eram insistentes. Não pareciam com fome. Mariscavam como se fosse uma rotina. Fora este o primeiro dia.

Dia 20 de março, terça-feira. Estava com pressa. Os dois já se encontravam no chão. O asfalto bem molhado. As poças d'água se espaçavam em intermitência. Lado a lado, eles caminhavam à procura de alimentos. Bicavam e bicavam. Parecia que era insuficiente para acomodar cada grão no papo com a avidez de quem procurava se satisfazer. E iam de um lado para o outro. Em algum ponto da sua trajetória alimentícia, permaneciam. Noutros, sentia-se que havia escassez. Como disse, não sabia, nem tinha como saber se eram um casal, comprometidos pela máxima bíblica do crescei e multiplicai-vos, sendo isso natural dessa espécie de ave, que se prolifera no mundo inteiro. Assim, voavam rasante para o outro lado da rua. Lá, na certeza instintiva haveria fartura. Encheriam o papo. Observei: parece que não deu certo. Ficaram pouco tempo naquele espaço. Bicaram que bicaram. Depois, os dois, primeiro o de asas mais cinzentas, em seguida, o de asas com algum resquício de branco, saltaram para o parapeito do prédio de frente, para alcançar a beirada do telhado. Ali ficaram algum tempo. Como fosse um fantasma desses que infestam os nossos sonhos fantásticos de infância, desapareceram
No dia 21 e 22 de março, dei uma trégua a esse casal ou apenas dupla. Mais ainda assim, lembrei-me que quando fazia caminhada, muito cedo, como se estivesse me preparando para São Silvestre, tinha o cuidado benevolente de sair, tendo às mãos, um saco com boa quantidade de farelos, que previamente, numa atitude samaritana, adquiria numa loja de animais (de toda espécie, só não havia ursos, nem girafa; se havia, não os vi) de uma esquina perto de onde moro. Também como se estivesse cumprindo promessa a um dos meus santos prediletos, e são muitos, espargia pelo solo, por onde passava, e havia pombos mariscando, mãozadas daquele precioso alimento. Eles, numa atitude de educação e de respeito uns para com os outros - eram muitos, sempre; aglomerados em cada esquina - se aproximavam com avidez, arrulhando em coro, para satisfazer a fome. Percebia: cada um dava vez ao outro, embora numa disputa de espaço. Enfim, fome é fome. Nesse tom de benevolência, cumpri, num determinado momento auspicioso de minha vida, a máxima sacrossanta e da poética música popular de dar milho aos pombos, hábito esse muito comum no Rio de Janeiro, na Cinelândia, na praça Sanz Pena e na Cruz Vermelha. Ainda bem que há bons cristãos, que amam os animais acima de todas as coisas.
Dia 27 de março, em plena Semana Santa, véspera de eu viajar para viver a Páscoa no interior, onde a religiosidade ainda é muito autêntica, bem cedo, fui para o meu ponto de observação. Os dois se bicavam com extremo carinho. Caminhavam e saltitavam lado a lado. Mais íntimos. Mais preocupados em agradarem-se. Pensei, mesmo sem conhecer a psicologia dos animais e especificamente dos pombos: - aí tem coisa. O de asas mais cinzentas parecia mais ativo, mais determinante. O outro ou outra, a demonstrar certo carinho receptivo, resignava-se com prazer incontido dos assédios. Aproveito e abro um ligeiro parêntese: no reino dos pombos, não há Código Penal, portanto assedia-se à vontade, com os limites impositivos do amor. Mas, voltei a pensar, na elaboração desse pequeno diário de paixões, ou de desencontros e encontros: é o amor que se propaga em todos os reinos, ainda que por um reles momento e ainda que decorrente de um mero sentimento instintivo. Assim, penso que devemos não só continuar dando milhos aos pombos, mas tê-los nessa dimensão de carinho, amor e solidariedade. Não se trata de autoajuda. Apenas de viver a vida.

* Membro da AML e AIL.