Confesso, sem qualquer pejo: ando confuso. Talvez seja porque o corpo social está confuso. Algum sábio, desses que encontramos a trottoir pelas nossas ruas ou praças, já me alertou que há um lugar e um momento certos para tudo. A questão fundamental é saber quando. A lei e os atos injustos amedrontam, e, quando os homens ficam amedrontados, perdem a sua socialidade, desagregam-se, diluem-se como seres políticos, uma vez que, forçados pela sobrevivência, se separam, acovardam-se. O grande pensador Rubem Alves, de quem adoro pescar ideias, resume, em Carpe Diem, essa dialética da sobrevivência, ao dizer que “a força da lei injusta está em que ela amedronta. Amedrontados, os homens se separam, cada um por si, tentando a sobrevivência. E separados eles são subjugados. Mas quando os homens, movidos pela voz da verdade e pela pureza do coração, se dão as mãos, a injustiça perece”. Ao vivermos, estamos a nos balançar num pêndulo que oscila entre o tédio e a dor. Precisamos superar o tédio e vencer a dor. Por isso, somos uma mistura de medo e coragem. O medo nos impõe a perplexidade do enfrentamento. Conscientiza-nos das nossas fragilidades. A coragem nos impulsiona a superar a dor do insucesso, do desenlace, das frustrações, das perdas, dos desencontros, do desamor. Paulo Mendes Campos fez com que um dos seus personagens dissesse que nunca teve medo porque nunca teve coragem. Não há dúvida de que há uma dialetização entre esses dois sentimentos que são imanentes a nós humanos. O ser corajoso só o é porque, essencialmente, tem medo, por ser consciente da dimensão do sofrimento iminente.
Estou às voltas com a leitura de um livro do filósofo Vladimir Safatle, um chileno, formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo e que resolveu ficar entre nós, publicando seus livros e textos em nossos jornais e revistas, assim ajudando a vencer os nossos temores e a dosar a nossa coragem. O livro de Safatle que estou a ler é o Circuito dos Afetos, no qual ele se dedica a estudar as dinâmicas da ação social e a desconstituição das identidades individuais e coletivas. De início, chamou-me a atenção o conceito de sociedades dado por ele, quando afirma que sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos, fazendo-nos assumir certas possibilidades de vida a despeito de outras. Diz, ainda: “Devemos ter sempre em mente que formas de vida determinadas se fundamentam em afetos específicos.” Assim, elas precisam desses afetos para continuar a se repetir, definindo modos de ordenamentos. Se a sociedade se desintegra, os afetos desaparecem e ouros nascem, para produzir sentimentos e sofrimentos.
A vida é uma atividade normativa. Ou aderimos aos sistemas de normas que produz coesão social, numa relação de intersubjetividade, ou devemos nos voltar para uma interrelação de circuitos de afetos, que desempenham concretamente esse mesmo papel. O fenecer dos afetos é uma decorrência da desintegração do corpo social. Assim, a sociedade não é sadia, apenas porque está política e economicamente sã. Já ensinara o sociólogo Émile Durkheim que “para as sociedades como para os indivíduos, a saúde é boa e desejável, a doença, ao contrário, é a coisa má que deve ser evitada”. Mas, reconhecendo as doenças sociais imanentes, Durkheim é quem afirma que “o crime é normal porque uma sociedade sem crime é impossível”, como é impossível ser despossuída de doenças.
Os afetos, como as sociedades, desaparecem e ressurgem, com novas conotações, estabelecendo novos critérios de normatividade, diferentes dos conjuntos de regras sociais impositivas para regular o convívio social. A mudança dos afetos implica mudança de regulação, uma vez que as sociedades são esses circuitos de afetos, que possibilitam o viver e o conviver. Todos somos produtos de nossa história de afetos, os quais se projetam no tecido social. O estar só e o estar socialmente representam um desafio íntimo nessa permanente luta de viver em sociedade. O escritor João Gilberto Noll, de vastíssima premiada e qualificada produção literária, sendo entrevistado no canal Arte-1, extravasou esse dilema: “Vivo essa dialética entre a solidão e essa necessidade monstruosa de ser o outro.”
Viver os afetos nos leva a esse dilema humano, de sair de dentro de si para ser o outro. De outro modo, a sociedade é um corpo sem alma. É econômica, é política, é arquitetonicamente bela, é tudo isso, menos humanamente afetiva. O medo nos encaramuja, nos fecha num mundo materializado por portões, cadeados, cercas elétricas, grades, indiferença, temor do presente e do futuro; a coragem nos desafia a fazer do inimigo um amigo, do desconhecido o conhecido, do miserável o sentimento de sentir a sua dor, do pobre o ser a ser protegido e amado não como indigente. Concluo, porque se faz necessário concluir, recorrendo a uma interrogação que colhi num diálogo de um filme: “O que seremos se não formos aquilo que acreditamos?”. Reconstruindo os afetos, que se despedaçam no curso das contradições e das mudanças, é possível fazer aquilo que acreditamos ser possível fazer? A resposta nos desafia a encontrar soluções.