Não lhe dava muita importância. Passava bem pertinho, no dia a dia de minhas rotineiras saídas matinais. E ainda passo. Estava ela sempre quieta, ou em leve balouçar, suportando o sol, a chuva e o vento frio. Os carros ficavam estacionados na sua sombra, sob as suas folhas e ramificações esparramadas. Cresceu muito. Assumiu proporções imensas, invadindo a biqueira da casa em frente, uma mistura de lanchonete e pequeno restaurante. Alcançou a rede elétrica. Repito: passava ao lado e não lhe dava a atenção, para perceber esses detalhes próprios da sua existência, vinculados ao mundo onde fora plantada e crescera. Por isso mesmo, nunca procurei saber sobre a sua idade. Pela folhagem e pelo tronco nodoso, como se fosse tatuado, de cima a baixo, não aparentava ser tão jovem, mas não envelhecera à decrepitude. O tempo a maltratara. Aparentava estar ali algum tempo. Quase na esquina, próximo à banca de revista e de um posto de táxi. As pessoas demonstravam se sentir bem com a sua convivência e uso sem ônus de seus préstimos, quer fizesse chuva ou sol.
Dia amanhecido, chuvoso. Chuva renitente, a espargir as gotas dágua em nosso rosto pelo vento frio. Não encharca, porém incomoda. Saí para a banca de revista, que fica mais um pouco adiante. Passa-se por ela e sobe-se uma rua íngreme, até alcançar a de cima. Estanquei no caminhar em vista da interdição da metade da rua e parte da calçada. Estavam a desnudar-lhe da sua natural vestimenta, retirando-lhe a robusta indumentária. Amontoavam-lhe os galhos num lado da via. O serviço de desnudamento exigia a participação de uma equipe. Os homens usavam pomposas luvas e utilizavam, para facilitar a poda, serras elétricas. De toda a roupagem que a caracterizava, restava quase nada: apenas um tronco encravado de musgos - folhas que teimavam em nele enroscar-se.
O desnudamento dela me fez voltar a um passado que insiste em provocar em mim as mais caras lembranças. O cajueiro ficava no final da rua, numa confluência entre outras vias mais estreitas. Servia para os moradores, normalmente no cair da tarde, aproveitar-lhe a sombra e, sob esta e em torno do seu tronco rugoso, se aninhassem para trocar conversa. Era uma frondosa árvore, com seus imensos galhos, suportados pelo vigor de um velho e robusto tronco. Numa tarde, sol a peno, sem prévio aviso, chega um trator, com alguns homens. Aproximaram-se do frondoso cajueiro, que, pelo tempo de vida, fazia parte daquela comunidade, como se integrasse a família dos que o circundavam, e iniciaram o procedimento para abatê-lo, cortando-lhe os galhos que sombreavam o ócio do entardecer. Restou-lhe apenas o imenso tronco, que foi facilmente arrancado do solo pela força insensível do trator.
Foi-se então o cajueiro. A sua derrubada fez algumas pessoas, com sensibilidade aflorada, verterem esguicho de lágrimas de saudade. Ah!, Nelson Rodrigues construiria uma imagem mais contundente. Mas vai assim mesmo. Alguns dos moradores choraram, é verdade. Pediram, antes, explicação aos homens do trator. Porém, a resposta quando não era o mutismo autoritário, ou o riso sarcástico de quem estava pouco ligando para o pobre cajueiro, se atinha à justificativa do cumprimento de determinação de alguém do governo municipal. Não iam mais adiante.
Órfã de seu filho, a rua ficou deserta, como se fosse um imenso Saara. Os moradores perderam o aconchego da sombra, nas tardes de sol, e a proteção nos dias chuvosos.Todos custaram a acostumar-se com os novos tempos. O sentar-se na porta voltou a ser praticada, de início com relutância. Os pássaros, estes também não avisados da morte do cajueiro, sentiram muito. O seu cantar perdeu sonoridade. Voavam de um lado para o outro, inquietos, sem eira nem beira. Pensavam: precisavam encontrar um novo lar. E se indagavam, num sofrido e não compreendido canto: para aonde fora o cajueiro? A resposta não lhes era dada. O mutismo atingia a todos. Com exceção dos bem-te-vis, que permaneceram com o seu canto matinal, os outros buscaram outros galhos.
Pois bem. Deixo o cajueiro no seu passado distante e volta ela, desnudada pelos mesmos motivos. Só não foi abatida por um trator. Mas foram-lhe retirados todos os galhos. Nada sobrou. Ficou apenas nudez do tronco crivado de musgos, a esperar que novos galhos venham a brotar. Fico a pensar se não deveria ter um aviso público, com prazo estipulado, antes de proceder ao desgalhamento, ou a ceifa definitiva. Mas não um edital. Não sou adepto do formalismo. Um mero e resumido,porém essencial aviso, quando se fosse abater, ou mesmo desnudar, uma velha árvore. Haveria uma preparação psicológica. Todos ficaram aguardando que a frondosa árvore se transformasse num inexpressivo e solitário tronco. Mas não seriam vítimas de um processo cruel e ditatorial de uma desnudez inesperada.