Os últimos acontecimentos tiraram-me do tédio. Vive-se o drama de Roskólhnikov, personagem do célebre romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, que assassinou uma velha agiota para roubá-la e do dinheiro, subtraído pela cruel violência do seu ato, pretendia fazer bom uso em benefício próprio e da família. Praticado o hediondo crime, Raskólhnikov entrou numa contradição ética, porquanto, apesar de ser desprezível a vítima, uma agiota exploradora, ainda assim era um ser humano. Passou a viver o drama da não aceitação do crime que perpetrara. Saindo da ficção dostoievskiana e vindo para a nossa nem sempre agradável realidade, chega-se à conclusão que, embora a vítima de um crime seja repugnante em suas ilações fascistas, ou suas atitudes anticivilizadas, trata-se, em que pese tudo isso, de um ser humano. Bem como do outro lado dessa relação fatídica de causa e efeito, há também outro ser humano, que merece ser respeitado na sua dignidade.

Falo do atentado ao candidato Bolsonaro. Muito se disse a respeito. Os concorrentes ao pódio, sem exceção, procuraram repudiar o fato em si, mas omitindo-se do exame das causas. De início, alguns apressados, entre os quais o general que disputa a vice na chapa de Bolsonaro, numa manifestação de oportunismo e de absoluta insensatez, apontou para uma trama diabólica do PT. Depois, mudou o discurso. Alguns "cientistas" (entre aspas mesmo) - nosso sofrido Brasil anda cheio de cientistas, verdadeiros teóricos sabichões - afirmaram que o ataque (como se fosse uma agressão terrorista) põe em risco a democracia. Até um outro general, comandante do Exército, vem à cena para dizer (pelo menos consta nos jornais), em tom de ameaça, que, em face dessa intolerância, pode até mesmo o governo eleito ter a sua legitimidade questionada.
Bem, isso não me espanta. A nossa democracia está por demais "generalizada". Quero dizer: há um excesso de militarização na nossa desgastada e frágil democracia. O que tem de militares participando de eleições é uma farra. Só rivalizados por pastores. Nesse jogo, é coronel pra cá, major pra lá e general prali. Enfim, estamos vivendo a overdose de uma militarização pelo voto. A ditadura sendo instaurada e de modo bem sulamericano. Razão pela qual um "cientista" político lançou um livro em que a sua preocupação é com o fim da democracia. Os banqueiros, se não se associarem a esse novo (e velho) método de conquista do poder, podem ter problemas no exercício da sua hegemonia, que se destaca no domínio econômico, sobretudo quando elegem candidatos que irão prestar serviços no legislativo, na defesa do seu dinheiro (deles).
Alguns alertas são necessários. Um historiador norte-americano brasilianista, Bryan McCann, em recente entrevista dada a um jornal brasileiro, em 26 de agosto, refere-se que o risco da democracia no Brasil é real. E faz esta afirmação: "Uma democracia plural tem que ter representação de várias tendências no governo, mas o momento atual é angustiante porque surgiu um setor da população brasileira que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente." E acrescenta: "A candidatura de Bolsonaro é fruto desse pensamento." Essa é uma realidade, deduzida do fato de que Adélio Bispo de Oliveira, que desfechou a facada no candidato, não agiu imbuído pela mais reles trama política.  Como afirma o historiador Leandro Narloch, autor da obra Guia politicamente incorreto da história do Brasil: "Adélio Bispo de Oliveira não esfaqueou Bolsonaro a mando do PSOL ou porque era de esquerda. É forçar a barra dizer que foi motivado por descrença na democracia, pela tensão das redes sociais ou pela intolerância de socialistas mais raivosos." Diz mais: "O agressor de Bolsonaro é um lunático. Como o homem que atirou em Ronald Reagam em 1981 para ficar famoso, ou o fã que anos antes matou John Lennon." Como se deduz, a democracia nada tem a ver com isso. E, embora frágil, com o governo golpista de Temer em fase terminal, não tem qualquer implicação com o desdobramento do processo eleitoral. Deve apenas servir de alerta para o candidato do PSL, que, conforme afirma Hesaú Rômulo, em texto publicado neste Jornal O Imparcial, em 10 de setembro, "quer mudar as coisas pelo viés da imposição autoritária", ou seja, consoante tem dito e repetido o candidato, pelo uso da violência. Suas fotos agressivas e incivilizadas têm sido amplamente divulgadas pela mídia de um modo geral, com o candidato marcando as suas posições ideológicas (se é que há alguma!?) em atitudes de intemperança militar: eu faço, eu mando, eu quero. Sou um pacifista, nesse prisma posso até tentar entender, porquanto se trata de um militar habituado a ordem unida e a continência como dever de hierarquia, mas não sou um passivista, na concepção de aceitar um comportamento que compromete e fragiliza a democracia. Não foi por outra razão que os brasileiros se sacrificaram e foram à luta para combater, como o fizeram, com extremo denodo, o regime ditatorial militar. Caminhemos, democraticamente, mas sem ordem unida ou continência. O Brasil não pode naufragar em aventuras autoritárias que só interessam aos grupos oportunistas que estão encastelados no poder econômico e político. Até porque não existe guerra deflagrada, como afirmou um major deputado. O que existe é a busca incessante da paz. Da melhoria de vida do pobre vulnerável. O gesto do agressor é de natureza meramente individual, de uma pessoa insana. Nos Estados Unidos da América, que não gostaria como modelo para o Brasil (o nosso país tem sua própria cultura), teve, no cumprimento do mandato, três presidentes assassinados, entre os quais Lincoln e Kennedy, e a democracia, em que pese Trump e as suas perigosas fanfarronices, continua forte e viva. As eleições se aproximam e temos grandes opções de contribuir com o nosso voto para um Brasil sem retrocesso institucional. Votemos sem o ranço do atraso.

* Membro da AML e AIL.