Aureliano Neto*
Maçã já foi uma fruta rara e muito chique, mesmo metida à besta. Não que ela se metesse à besta. As pessoas é que lhe davam esse ar de importância, porque poucos tinham acesso a ela. Comer maçã era sinal de que, quem a saboreava em fatias ou por bocanhadas - e aí não escapava nem a casca -, ostentava status privilegiado onde morava. Era degustada na sala, fazendo jus à sua ostentação de nobreza. Não lembro ter visto ou sentido a presença sequer de uma reles maçã na casa do meu avô, carroceiro que vendia outras frutas menos refinadas. O tabuleiro que ficava no corredor daquele casarão - parecia um castelo -, expondo os frutos da venda, continha mangas, algumas de qualidade (rosa, bacuri), outras de fiapo, a preço convidaditvo. Os tostões davam para comprar. Quando não suficientes, davam-se aos mais carentes. Às vezes, ali estava a maria-pretinha, o canapu, também conhecido por bombom-da-roça, guajuru, oiti, junça, banana (roxa, prata ou maçã, mas não a própria, apenas a conhecidíssima banana que levava esse fantasioso nome), além de pimenta-de-cheiro, maxixe, quiabo e abóbora. Mas maçã, não. Era fisicamente desconhecida, embora fôssemos informados de que ela andou fazendo das suas no paraíso, na célebre narrativa de Adão e Eva, que a Bíblia (o Velho Testamento) nos conta. O certo é que a origem histórica da maçã é muito pouco edificante, servindo de enredo para a traição e a mentira, quando Eva, com a sutileza da mulher inteligente, enganou Adão, fazendo-lhe que comesse o fruto proibido e despertasse das benesses do paraíso para viver no inferno dos males terrenos.
Do episódio da maçã, que nos é relatado no Velho Testamento, em diante, dizem os entendidos nas coisas antigas, nunca mais fomos os mesmos, ou melhor, falando: nunca mais o homem foi o mesmo. Ora ama, ora desama; ora trai, ora é traído. Criou-se um círculo vicioso, como se estivesse o homem a vingar-se simbólica e eternamente da mulher, e esta, aqui e acolá, a passar-lhe o pé, quando não lhe passa o bico, como ocorreu na citada narrativa histórica e em outras mais de nossos tempos.
Ainda assim, em que pese toda essa origem de relação de desconfiança, o homem tem desejo ardente pelo casamento. Antes, apenas o casamento tradicional entre o homem e a mulher. Nos dias atuais, as coisas estão mais flexíveis. Pois bem. Vamos ficar no mais tradicional. É certo: os valores mais recentes estão em consolidação, embora a relação homoafetiva não seja um tipo de convivência tão nova, abrangendo o século passado para o XXI. Muito pelo contrário, talvez venha dos primórdios dos tempos, no momento em que o homem e a mulher começaram a ter dúvidas sobre os seus anseios de gênero.
Com o divórcio definitivamente consolidado e o reconhecimento sociologicamente das famílias, nas suas mais diversas concepções, pensei cá comigo que o casamento tinha saído da moda. Mas, qual nada. Continua firme o velho casamento. Agora, mais amplo. Casam-se homem e mulher, mulher com mulher e homem com homem. Na verdade, o sexo deixou de ser sexo (masculino e feminino, não, isso é tão velho quanto Adão e Eva) e passou apenas a ser gênero. Talvez se esteja alcançando a máxima de Beauvoir (a Simone de Sartre): ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Do mesmo modo, sem nenhuma jaça, ninguém nasce homem, torna-se homem, a depender do caminhar e do curso da vida. Ora pode ser, ora pode não ser. Se se trata de doença, a ciência já disse, do alto da sua sabedoria, que não é. Aliás, é preconceito assim pensar. O homem e a mulher não nascem homem ou mulher. Apenas nascem. O gênero é definido, cultural e psicologícamente, no decorrer do tempo - essa eternidade móvel, no dizer de Platão. É uma questão de aguardar para ver como é que fica.
Mas deixemos de lado essas sutilezas e voltemos ao enlace matrimonial. Pois é, o casamento no passado não tão distante fora originado do rapto. Verdade: - a noiva era raptada pelo noivo ou por seus familiares, e o casamento era realizado, porque havia proibição do casamento entre os rapazes ou moças das tribos oponentes. Então, por causa dessa proibição (convenhamos absurda para o amor), o recurso, para que fosse alcançado o casamento entre os apaixonados, era o rapto da noiva. Mas, infelizmente, a igualdade entre os nubentes não era tanta, assim não havia rapto do noivo. Uma pena! Esse costume se perpetuou até os nossos conturbados e pacíficos dias. Dizem que, no Vietnã, pouco tempo atrás, o casamento por rapto era uma prática corriqueira, e a família da noiva o aceitava não manifestando oposição de qualquer ordem. A esse respeito, a história nos conta um fato inusitado. Rômulo, lendário fundador de Roma, em obediência aos preceitos do casamento fora do clã, propôs uma aliança conjugal. Como houve recusa, organizou o rapto das mulheres e das moças da tribo dos sabinos. Deu-se, assim, o histórico rapto das sabinas, as quais, de besta não tinham nada, prontamente aceitaram o enlace, evitando o desfecho cruel de derramamento de sangue.
Em que pesem todos esses fatos históricos, tomei conhecimento de que na Igreja Nossa do Brasil, localizada na zona oeste da capital paulista, a fila é imensa para que sejam marcados os casamentos. Lá, dizem os mais otimistas, não há atraso - o tradicional e insuportável atraso de uma, duas ou três horas, já que, nos sábados, são realizados seis casamentos, das 17h às 22h. Assim, com rapto ou sem rapto, o casamento continua na moda, desafiando o divórcio e os desencontros conjugais, dando razão ao poeta, que brada para todos nós: a vida é arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.
aureliano_neto@zipmail.com.br
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