Já não me lembro mais da sua pessoa. Se era alta, baixa, tipo de cabelo. Branca sei que era. Mas apenas não me ocorrem os traços da sua pessoa física, que se perdeu na passagem do tempo distante. O tempo tem essa força passageira diluidora. Devastadora mesmo. Sepulta algumas de nossas ternas lembranças, deixando-nos órfãos das pessoas que, por um momento, ainda que por um exíguo momento, as tenhamos amado, ou a elas devotamos uma ternura, próxima da fronteira do amor. D. Zezé fora uma delas. Quando passo pelo Codozinho de Cima, em frente onde fora sua casa, bem nas proximidades do Lira, sou repentinamente devorado pela força samaritana de sua lembrança. Ela aparece no fim do túnel, paradoxalmente nebulosa e nítida pelos sentimentos ainda vivos, como um anjo que se fez mulher. Não sei se de cabelos compridos, claros ou negros. A mim uma mulher branca, muito determinada na sua missão de curar, ou de ajudar os doentes na mitigação das dores que os acometia. D. Zezé era uma espécie de anjo da bondade. Não sei se todos a procuravam. Mas sei que era muito procurada.
Naqueles dias, as ruas eram bairros, e os bairros eram verdadeiras cidades. Ir ao João Paulo era viajar. Ao Anil, outra grande viagem. E de bonde, era um nunca terminar. A pressa ainda era inimiga da perfeição. Já não é mais.
D. Zezé deve estar no céu. Tenho essa forte impressão. Há pessoas que passaram por nosso contraditório mundo e que foram para essa última morada. Não pode ser de outro modo. Se há o bom e o mau, os dois que convivem (ou desconvivem) por aqui com extrema dificuldade, ao se despedirem de nós, não podem ir para o mesmo cantinho da eternidade. Não quero dizer que o mau vá para o inferno. O inferno, se não for por aqui mesmo, não tenho dúvida de que algum pedaço dele está fazendo morada entre nós. Há um tanto imenso de maldade avassaladora a provocar o nosso sossego. Confesso: não vou recorrer à Bíblia para dar explicações a esse fenômeno dicotômico: o bem e o Volto a D. Zezé. Entro no Codozinho de Cima, onde passei uma parte de minha infância, ela está bem ali, logo na pequena subida. Havia uma graminha baixa, bem verde. O asfalto a cobriu. O muro do cemitério está firme, inerte, inalterado, secular, ocultando os que nos precederam. A calçada, por onde fazíamos correr os patinetes, feitos, a grosso modo, de rolamentos, é apenas um filete, como se fosse um desses nossos rios que desapareceram pelo encanto do toque da varinha da fada do mal, que o fez sumir. Descíamos a toda velocidade, equilibrados nas duas rodinhas do patinete. O freio era uma borracha que tocava de leve ou com força na roda traseira.
Era uma vez um dia em que se brincava de patinete, escorregando por uma calçada que desapareceu como se tocada por uma varinha encantada do tempo. E o rio onde se tomava aquele banho de fim de tarde também não mais existe.
E era vez uma vez D. Zezé, uma pessoa bondosa, prestativa e missionária no servir, e que tinha como rivais outras pessoas bondosas e prestativas. E era uma vez um mundo de muitas pessoas bondosas e prestativas. Mas... esse mundo, insisto, ainda não desapareceu. Apenas vive escondido num mundo de faz de conta. Das portas fechadas, das janelas cerradas, com grades de ferro, e do formalismo do bom dia e da boa noite, espremidos por quem passa num grunhido formal de desinteresse.
Não quero deixar fugir D. Zezé. Ela chegou impondo uma necessidade de falar-se dela, por ser personagem desta crônica. O maior prazer é de não abrir mão dela, até por estar aprisionada distante no inconsciente.
Era criança. De cinco ou seis anos de idade. Morava com meu avô na casa grande do Codozinho de Cima. D. Zezé logo na entrada da rua. Conhecida como Zezé Enfermeira. Meu avô tinha uma doença (ou algumas doenças, não sei) que o fazia padecer de intensas e sofridas dores. À noite, agravavam-se. Ouvia a súplica: – Menino, vai depressa chamar D. Zezé. Pulava da rede em disparada para casa de D. Zezé, pois sabia que a sua chegada era um lenitivo para o sofrimento do meu avô. Sempre disponível, D. Zezé saía de casa para cumprir a sua santa missão, sem esboçar qualquer contrariedade. As dores eram cruéis. Meu avô gemia. Gritava. Não se aquietava na cama. Só quando D. Zezé chegava, e tomava algumas providências, aí o meu avô encontrava o sossego de poder amanhecer. Foram muitas vezes. Foram muitas chamadas. Essa samaritana da enfermagem doava-se nessa missão de servir.
D. Zezé Enfermeira, o tempo tem essa força de passar. Mas a questão não é o tempo passar. É a vida não passar. Quem viveu a intensidade do tempo passado, não terá sobre si a sepultura do esquecimento. Uma vida de amor não morre no passado. Pelo contrário, como nos lembra Faulkner, “o passado nunca morre. Sequer é passado”. Retorna-me a súplica: – Vai, menino, chamar D. Zezé.
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