Aureliano Neto*

Fazendo algumas leituras aleatórias, mesmo despretensiosas, muito mais para divagar do que para refletir, deparei-me com um texto do antropólogo Roberto DaMatta, publicado na revista semanária Época, edição de março de 2012, n.° 723, em que, ao discorrer sobre a ilegalidade no Brasil, asseverou que "em nosso país, tudo que é legal ou ilegal tem uma zona cinzenta, onde as coisas vazam e o ilegal vira legal (e vice-versa)". E, a partir dessa premissa, questiona a legalidade ou não do jogo do bicho, que considera uma instituição popular nacional e de origem eminentemente brasileira. Denomina essa prática, em amparo da tese que expõe, de "crime relativo", isso porque o Estado, como pessoa jurídica pública, banca outros jogos, entre os quais o de loteria, assim, deduz-se, mistura-se o legal com o ilegal no espaço que rotula de zona cinzenta.
No Brasil, como no mundo inteiro, vive-se a cultura da ilegalidade, origem da violência que vilipendia direitos assegurados nos sistemas sócio-jurídicos, que têm como finalidade garantir o pleno exercício da cidadania. Essa transgressão da legalidade está presente em todas as esferas da sociedade. Ninguém escapa, embora todos se digam imunes. Essas vicissitudes atingem do mais simples mortal ao mais complexo vivente, dependendo das circunstâncias e dos interesses a serem tutelados em vista dos atos praticados ou das omissões.
Vem-me à lembrança um fato. À época, inusitado; nos dias atuais, nem tanto. Exercia a função de juiz do Juizado Especial de Trânsito, de São Luís. Tramitava uma demanda sobre acidente de veículo, ocorrido numa das vias sinalizadas por semáforo. Estava a colher o depoimento das partes, que insistiam em manter irredutíveis as suas posições antagônicas. O conflito estava posto: o autor da ação afirmava que o seu veículo havia sido abalroado pelo carro do reclamado numa das laterais, não lembro se esquerda ou direita. A parte demandada, um homem de cabelos grisalhos, de ar sisudo, circunspecto e convicto, afirmava, com veemência, própria da idade que aparentava ter, que não agira de forma errada. Pois bem. Prossegui ouvindo as partes. Os depoimentos foram dados. Declarou-me peremptoriamente o reclamado que cortara o sinal amarelo, dando-se a colisão. Reperguntei-lhe: - Ultrapassou o sinal amarelo? Respondeu sim, dando ênfase à entonação do que afirmara. Insisti: - Por quê? Declarou, sem esboçar qualquer dúvida: porque todos fazem assim. Vejam bem, admitiu o erro e, ainda por cima, o justificou como se fosse uma conduta corriqueira. Ou seja: a prática ilegal, pelo uso costumeiro, passou a assumir traços de legalidade, na concepção do infrator, gerando, em vista do descumprimento repetido, violência contra o bem jurídico do outro.
Prosseguindo nessas minhas leituras descompromissadas, fui detectando a prática da ilegalidade, caracterizada, como rotina, por atos contrários à ordem estabelecida, que contamina o sentido moral da vida. Reflitam comigo: a exigência de propina, em procedimentos licitatórios, passou a ser um componente essencial da ética do mercado. Isso a nos dizer que licitação sem propina perde a sua essência, descaracterizando o aspecto lúdico da disputa de quem dá mais e do valor a ser recebido, embora essa prática ilegal se configure em violência contra o patrimônio público. Vejamos, num outro pólo geopolítico: nos Estados Unidos da América do Norte, se bem que seja o país, dizem, que mais combate o narcotráfico, alguns estados, como Califórnia, admitem a produção e a comercialização da maconha tida como medicinal. Esse mercado verde responde por uma receita de 1,7 bilhão de dólares, podendo alcançar 9 bilhões em 2016. As vendas desse medicinal "produto" são realizadas através de anúncios amplamente divulgados pela mídia impressa. Apenas a receita reveste essa prática de legalidade. Assim, esse salvo-conduto descriminaliza o "tráfico" permitido da maconha. Como essa droga é a porta de entrada para os mais agressivos narcóticos, o combate norte-americano contra os traficantes perde total significado ante o fortalecimento econômico do "capitalismo verde".
Fato recente. E vejam que confusão dos diabos. Uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, acompanhada de sua filha, advogada, foram ambas levadas para uma delegacia de polícia sob a acusação de desacato, enquanto replicavam a atitude dos policiais como de agressão, não tendo ficado claro se física ou moral. O certo é que, diz a notícia, que foram paradas numa blitz da lei seca, aquela norma de trânsito que proíbe dirigir veículo sob o domínio de substância alcoólica. A desembargadora, descendendo do veículo, se identificou como tal, ah, pra quê!, foi o início do quipropró. Vejam bem: o STJ, dito na Constituição Federal como Superior Tribunal, já decidiu reiteradas vezes que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, submetendo-se a teste do bafômetro. Mas parece que isso e nada, pra não dizer outra coisa mais vil, pouco tem influenciado o ânimo dos nossos incorrigíveis policiais, que insistem no teste, não respeitando os direitos assegurados na nossa Constituição cidadã. E, assim, dá no que dá.
E as ilegalidades vão se rotinizando de tal maneira que a nossa grande mídia, que, em passado não tão longínquo, deu apoio à derrubada de João Goulart, legitimando o golpe de 64, que levou o nosso país para uma ditadura de mais de 20 anos, tem deixado transparecer, num alinhamento às escâncaras com os Estados Unidos, que a derrubada de Fernando Lugo da presidência do Paraguai é ato constitucional. É a chamada constitucionalidade liquida. Um tanto denorex. O diabo é que, se essa moda pega, a presidenta Dilma que se cuide, pois, se o parlamento brasileiro resolver derrubá-la, o fará em rito sumaríssimo, com os louvores midiáticos de sempre, transformando o ato ilegal em arremedo hermenêutico de constitucionalidade. Nem quero ver para crer.

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