Aureliano Neto*

Não é minha musa. Ela é musa e anjo salvador de Augusto. A vê-la, não me parece fisicamente uma Julieta dos cinemas, e ele não tem aparência de Romeu. Olhos azuis, o nosso personagem masculino tem alguma semelhança de um exibido modelo cinematográfico. Só semelhança. Mas a história do encontro de Ediana e Augusto relembra um conto de fadas, felizmente sem sapatinhos ou anões, embora tenha acontecido aqui mesmo em terras brasileiras. Os dois saíram do nada para o mundo de alguma coisa. Bem da verdade, os dois eram absolutamente nada, ou apenas eram, e, encontrando-se, passaram a ser quase tudo. Construíram um castelo de vida após o inexplicado momento mágico do encontro.
Ediana, de sorriso largo e sincero, conta o que se passou:
- Tudo começou numa manhã de outubro. Um dia como outro qualquer. Nublado. Passava pouco mais das sete horas da manhã. Escutei o ressoar insistente do bater palmas na frente da minha casa. Entreabri a porta. Olhei na direção das palmas. Vi um morador de rua na porta da casa da vizinha. Embora estivesse a chamar pelos moradores da casa de frente, que não lhe atendiam, perguntei se precisava de ajuda. A reposta dada foi imediata: pediu-me comida e dois reais para comprar cack, a droga da moda. Não me surpreendi, nem me senti agredida com o pedido de dinheiro para compra de crack. Apenas olhei com atenção para o pedinte com ares de mendigo dos filmes de Chaplin. Olhei-o com mais atenção. Pensei: há tanta sujeira naquela pessoa, que era possível raspá-la com uma colher. E o seu corpo, cheio de manchas, exalava um fétido cheiro. Insuportável odor. Corpo magro, esquálido. Usava uma calça torta, com um nó dado no canto da cintura. Essa imagem de destruição física gerava uma defensiva e repentina fuga de quem a presenciava. Foi esse meu sentimento inicial, porém transitório. Resisti ao repúdio. Vi naquela figura fragilizada um ser a necessitar da mão estendida.
Ediana segue a relatar o drama do início do encontro. Não deu dinheiro, mas lhe deu atenção. Conversaram, e conversaram muito, percebendo que Augusto escondia dela as unhas sujas dos pés. Ora, vejam bem, pensou para si mesma: - De tantas imundícies, espalhadas pelo corpo, as unhas sujas dos pés representavam a vergonha daquele maltrapilho. Ainda assim, desse quase imperceptível detalhe, percebera Ediana que o seu interlocutor mantinha uma réstia de amor-próprio. Ele tinha vergonha das unhas sujas dos pés! Restava-lhe alguma autoestima. De tudo, tinha vergonha das unhas sujas!
Dias seguintes, por ter Augusto recebido atenção, voltaram a conversar. E continuaram a conversar. Ela sem emprego, vivendo na casa da família, com uma irmã, ele jogado nas intempéries da crueldade das ruas, no uso do crack e se alimentando do que lhe restava no banquete dos necessitados. Um filho pródigo na dimensão pósmoderna. No quarto dia, para ser mais preciso nesse calendário de carências afetivas, Ediana deixou que Augusto tomasse um banho quente na casa onde morava. O espanto: - Você deixa?!! A resposta incisiva e resoluta: - Claro! Banho consumado, Ediana cortou-lhe as unhas. Deu-lhe algumas roupas e muita atenção. Ressalve-se: Ediana também passava por momentos difíceis. Desempregada, com dívidas acumuladas, estava na iminência de ser despejada, embora morando com sua irmã. A comida escassa, escassíssima, mesmo assim pôde dividir o pouco que tinha com Augusto nessa construção inicial da vida a dois. Em torno de si, como não poderia ser de outra forma, desaprovação daquela inusitada amizade: Ediana estava a se relacionar com um morador de rua, drogado, sem eira nem beira. Venceu a resistência. Foram morar juntos. A família, desesperada com esse desfecho, chamou a mãe de Ediana, que veio da distante Minas Gerais. A mãe, como quase sempre ocorre, apenas a compreendeu a inusitada situação e deu amparo à filha, procurando ajudar a Augusto no tratamento para livrar-se da dependência do crack. Tudo superado, uniram-se os destinos e estão a viver há mais de sete anos. Casaram em 04 de dezembro de 2010. Dessa união, nasceu um filho, que já está com idade de quatro anos. Tudo, contado assim, não parece verdade. Parece mais um conto sem nenhuma importância. Mas Augusto começou o seu processo de destruição com a dependência do álcool, passando pela maconha, até chegar ao crack. Encontrou no seu caminho um anjo salvador. A vida foi reconstruída.
O mundo tem o lado duro e cruel. A vida de Augusto, até encontrar-se com Ediana, foi uma gangorra, indo do céu ao inferno. Foi modelo. Fez desfiles em festas de debutantes. Participou de programas de auditório. Figurou em novelas da TV Globo. Envolveu-se com droga. Tudo isso desmoronou. Desceu até o último degrau, quando lhe apareceu Ediana, que lhe estendeu as mãos e o fez renascer para a vida. Alguns dirão: como retórica de efeito, só o amor constrói; outros: não precisa amor, basta a solidariedade da mão estendida. Enfim, o inferno não somos nós; o inferno, como afirma Sartre, são os outros, na medida em que são tomados como modelo valores ou antivalores que os outros nos fazem crer. Assim, não há que esperar o inferno, que está no meio de nós mesmos. A salvação de continuarmos a ser queimados nas suas chamas devastadoras está no ato de solidariedade da mão estendida, que pode ser o amor, a compaixão, a paixão, ou apenas um mera atenção. Pouco importa. O que importa é encontrar-se com alguma Ediana, que pode estar à espreita de qualquer um de nós, com mão estendida para nos livrar dos infernos que estão a nos atormentar.

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