“Os inimigos mortos tinham as mãos e o pênis cortados”, assim consta no relato da história egípcia. Acreditavam esses antigos povos guerreiros que, podando essas partes do corpo do vencido, privavam definitivamente os inimigos de lutar e de se reproduzir. A história se repete, porém, conforme Karl Marx, “a história de repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa”. De uma forma ou de outra, se repete. O vencedor, seguindo essa crença egípcia, destrói o inimigo, extirpa-lhe as mãos e o pênis, para que não ressurja das cinzas e volte à luta. É preciso liquidá-lo totalmente.

Na história recente, repetindo a lógica egípcia da destruição total, as mãos e o pênis, a serem decepados, são símbolos representados por um líder. Enquanto o líder respirar, embora caçado, em todas as frentes de batalha, a luta nunca cessará, e os seus seguidores podem se reproduzir, fato comprovado quando o líder e esses seguidores (alguns desertaram no caminho, o que é natural) se unirem para formar um exército com uma força política poderosa, que teve a audácia de derrotar os donos do poder, na acertada denominação de Raymundo Faoro.
Os egípcios, tanto como os romanos (cujas bases políticas de Roma eram a guerra, a escravidão e o domínio territorial, linguístico e de imposição da ordem jurídica), destruíam os inimigos, física e moralmente, escravizando-os. Cortavam-lhe as mãos e o pênis. Vez por outra, surgia um dissidente dessa teoria, e tão logo era eliminado. Cita-se Tibério, que sucedeu Augusto. Caiu na tolice de defender a reforma agrária e, como consequência absolutamente natural (vide Jango, no Brasil, com as reformas de base), foi assassinado pela elite senatorial, detentora do domínio de grande parte das terras. A história romana não diz se lhe cortaram as mãos e o pênis. Parece que não. Mas fizeram mais. Mataram-no. E não se tem notícia de novas lutas e de que Tibério teve seguidores reproduzidos a partir de suas ideias reformistas, sobretudo para desapropriar terras de latifundiários.
No Brasil, o nosso Tibério foi João Goulart. Mas esqueceram de lhe cortar as mãos e o pênis. As suas ideias reformistas continuaram, e outros seguidores apareceram. Getúlio foi outro Tibério. Criou-se a figura do mar de lama, sob o auspício de Lacerda, uma espécie de golpista esquizofrênico, e a cadeia de comunicação de Chateaubriand. Getúlio não teve alternativa, recorreu ao suicídio. Dado o ato imprevisível, não tiveram tempo ou oportunidade de cortar-lhe as mãos e o pênis. No curso da história, surgiram milhares de outros seguidores, que conseguiram abocanhar o poder. Se tivessem seguido a regra egípcia, tinham os vencedores se livrado de toda essa confusão, embora tenha surgido um sociólogo idolatrado pela elite senatorial ou não, que declarou do alto do seu trono: - Acabou a Era Vargas! Blefou! Pelo menos durante esses últimos quinze anos.
Mesmo os menos entendidos em sociologia, ou em história ou em ciência política, desses escravizados pelo sistema econômico, suspiraram e rebateram para si mesmos: Que petulância sociológica! E que crueldade com a história de um povo! Para concluir: não cortaram as mãos e o pênis de Getúlio.
O Egito caiu e continuou a viver a seu drama histórico. Roma seguiu o mesmo caminho. Teve Mussolini, que, enquanto pôde, cortava as mãos e o pênis dos inimigos. Um dia: foi a sua vez. É a história de repetindo ora como tragédia, ora como farsa.
No Brasil, tenta-se, a todo custo, cortar as mãos e o pênis do inimigo da elite ou da falsa elite. A finalidade não é bem assassinar Tibério, pois o tiro pode sair pela culatra, preservando-se a corrupção declarada e comprovada de conhecida eminência da alta cúpula da República, associada aos áulicos da economia e da elite senatorial. Resta cortar as mãos e o pênis do inimigo vencido, para que não possa voltar a lutar e reproduzir-se. Resta eliminar o César, não o da história romana, mas aquele que insiste em lutar pelos 40 milhões de incluídos e que estavam vivendo, ainda recentemente, à margem das benesses sociais. Como acentua Maurício Dias, na sua coluna Rosa dos Ventos, Carta Capital, de novembro deste ano, o seu grande erro cometido foi de ter, na Presidência da República, contemplado 40 milhões de excluídos da sociedade com o status de cidadãos brasileiros. Uma grande parcela da elite se horroriza e reage a isso, não suportando conviver com os novos passageiros de aviões. O que é isso?, repudiam: Aeroporto não é rodoviária! Então, só a derrota não é suficiente. É necessário cortar-lhe as mãos e o pênis, para que a luta não continue, e seus seguidores não se reproduzam.