Sonho meu, sonho meu / Vai buscar quem mora longe, sonho meu / Vai mostrar esta saudade, sonho meu / Com a sua liberdade, sonho meu (...) Traz a pureza de um samba / Um samba que mexe o corpo da gente / E o vento vadio embalando a flor. Com o lirismo desses versos e a melodia que os faz eternos, Dona Ivone Lara nunca passará, Chico. Tudo passará. Os céus e terra passarão. Mas o encantamento poético se eterniza na arte que nos embala e nos faz sonhar que o mundo é de todos os poetas: dos que fazem a música, dos que cinzelam a escultura, dos que abstraem a sua criatividade na pintura, dos que fazem versos e a prosa, transformando as palavras num mundo novo de sentimentos poéticos, para vivenciarmos outro realismo fantástico que só o artista sabe construir e nos possibilita o sonho dessa nova realidade, que se sustenta oniricamente no prazer do estético. 

A Grande Dama do Samba, aos noventa e sete anos de idade, foi sonhar os sonhos do encantamento de todos os poetas. Mas continua a estribilhar seus versos pelos barracos e casebres do morro, em todas as favelas, nas palafitas, em salões sofisticados, nas casas humildes, nas grandes festas, na casa grande e na senzala, ou mesmo nos palácios, cujos moradores de fraque e gravatinha borboleta, ainda se pejam de ouvir esse canto lírico, esse sonho meu, seu, de todos nós, por que não?, e suplica: vai buscar quem mora longe, sonho meu, vai mostrar esta saudade, sonho meu.
No samba Acreditar, que Dona Ivone fez com o seu parceiro constante Délcio Carvalho, também coautor de Sonho meu, a Dama do Samba é cética com o passado e canta: Acreditar, eu não / Recomeçar, jamais / A vida foi em frente / E você simplesmente não viu que ficou pra trás. E finaliza com o refrão: E eu agora moro nos braços da paz / Ignoro o passado / Que você me traz. Assim como Sonho meu ficou imortalizado na voz cativante e melodiosa de Maria Bethânia, Acreditar ficou eterno na interpretação do grande sambista Roberto Ribeiro, que, durante muitos anos, esteve na avenida à frente da Império Serrano. Lembrem-se do hit Todo menino é um rei, um samba cadenciado e com muito suingue dolente. Depois, na boa interpretação de Diogo Nogueira, filho de João Nogueira, este um sambista dos melhores que nos legou tantas canções. Nele, Em todo menino..., os versos: Menino sonha com coisas / Que a gente cresce e não vê jamais. Tudo sonhos. Nós poeticamente sonhadores. Sonho meu, sonhos teus, sonhos nossos. Ou apenas sonhos. Dona Ivone transformou com a sua verve artística os seus sonhos nos sonhos de todos nós. Daí a evocação: sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho meu, vai mostrar esta saudade, sonho meu.
Ó Chico, que meu caro amigo de tantos anos (mas ele não sabe dessa afinidade estética), desde A banda, Quando o carnaval chegar, Pedro Pedreiro, Cotidiano, Olé, olá, Até pensei, volto a insistir, sou obsessivo, Dona Ivone não vai passar, apesar daquela turma, lá de trás, que agora retornou com todas as forças reacionárias, personagens do nosso Vai passar, num tempo essa página infeliz da nosso história, até porque, Chico, eles mesmos, com a nossa gente olhando pro chão (excesso de desempregados, informalidade, miséria, desesperanças), que criaram toda essa escuridão, com mil pecados e trapalhadas, como o amigo bem alertou, vão pagar com juros, todos esses sonhos reprimidos e todos os gritos contidos. Hoje, convenhamos, Chico, a Fiesp é quem manda, e, quando chegar o momento de findar todo esse sofrimento, apesar dessa gente, o samba de D. Ivone Lara continuará a sonhar todas as nossas utopias de viver numa sociedade feliz, com igualdade para todos, pobres, ricos ou arremediados. Sonho meu? Sonho teu? Ou nossos sonhos?  Os poetas têm a força da arte de responder a essas tão graves indagações. 
Ainda a tempo, em plena resistência à ditadura civil-militar, aquela que se instalou a partir do fatídico ano de 1964, do conhecimento de algumas raras pessoas que conhecem a nossa história, Zé Keti, na voz de Nara Leão, concitava o inconformismo do poeta do samba: Podem me prender, podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não / Se não tem água, eu furo um poço / Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na soa / E deixa andar, deixo andar /Fale de mim quem quiser falar / Aqui eu não pago aluguel / Se eu morrer amanhã, seu doutor / Estou pertinho do céu. Esse canto de protesto saía do Teatro Arena, do show Opinião, e ressoava pelo Brasil inteiro. Nas prisões ou nos porões das torturas, o poeta canta a sua mágoa e replicava: Podem me prender, podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião. Nem a Globo, com todas as suas novelas alienantes, conseguia calar essas vozes dissidentes. E Chico, lá no festival, em plena repressão, no ano de 1968, com música de Tom Jobim, alertava, antes que os idiotas o mandassem para Cuba do reacionarismo patológico; Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e ainda é lá / Que hei de ouvir cantar / Uma sabiá.
Ainda bem. Dona Ivone nos exalta, no seu encantamento, o lirismo do sonho meu. E Chico, apesar desta página infeliz da nossa história, está voltando, aplaudidissimamente, para deitar à sombra de uma palmeira, que já não há, e colher a flor, que já não dá. E volta nos belíssimos e melodiosos versos de Sabiá: Vou voltar / Sei que ainda vou voltar, sem deixar dedilhar a lírica modinha Até pensei, para, em lirismo incontido, nos dizer que A felicidade morava tão vizinha / Que, de todo, até pensei que fosse minha. 

* Membro da AML e AIL.