O nome é samba: Chico Buarque de Hollanda. Ou Chico Buarque. Ou apenas Chico. Redondilha maior, que tem o poder da canção eterna. E a música é da boa. O musical em sua homenagem diz tudo: Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos. Me fez lembrar da Maninha, da fogueira, dos balões e dos luares dos sertões, do futuro que a gente combinou, desde A Banda, e eu era tão criança e ainda sou. Deus sabe disso. É a sagrada arte de fazer canções. Mas lembrei-me dela, sempre um poço de bondade. Por isso que toda a cidade vive a repetir joga pedra na Geni, joga pedra na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni. E lá do outro lado da cidade, Januária na janela, que toda gente homenageia. Até o mar faz maré cheia, pra chegar mais perto dela, e o pessoal desce na areia, para encontrar os olhos fundos de Carolina, com tanta dor, a dor toda de todo esse mundo. Enquanto lá fora, amor, uma rosa nasce, todo mundo sambou, uma estrela caiu, mas o tempo passa na janela, só Carolina não viu. A banda passa cantando coisas de amor. Faz com que a gente sofrida se despeça da dor, só para ver a banda passar cantando coisas de amor. A moça feia se debruça na janela, pensando que a banda tocava pra ela. A cidade, sorrindo, se enfeitou, só pra ver a banda passar cantando coisas de amor. E cada qual no seu canto. Em cada canto uma dor. Depois tudo fica calmo, Chico, porque a banda passou.
Até pensei, Chico, que junto a mim morava a minha amada, quando chegou Beatriz, ora moça, ora triste, ora com o rosto pintado, o rosto de atriz, despencando do céu, se os pagantes exigirem bis, ou se um bom arcanjo passar o chapéu. Até pensei se junto a minha rua havia esse bosque que um muro alto proibia, onde todo balão caía e toda maçã nascia, e o dono, cego de tudo e do bosque, coitado, nem via. E todos nós a espreitar na noite escura, embora a felicidade tão vizinha e tão juntinha, com os olhos claros como o dia, que, de tolo, acreditávamos que a dona dos olhos nem via. Aí veio Teresinha, e se encontrou com o primeiro, o segundo e o terceiro. O primeiro chegou como quem vem do florista, trazendo um bicho de pelúcia e um broche de ametista. Contou suas viagens e também suas vantagens, chamando-a de rainha. O segundo veio como quem vem do bar. Trouxe um litro de aguardente, muito amarga de tragar, e arranhou seu coração. O último chegou como quem vem do nada, não lhe trazendo nem um nada, se deitou na sua cama e a tratou como mulher, e tomou seu coração. Teresinha amou daquela vez como se fosse o último, beijando o sorrateiro invasor, antes que dissesse não, como fosse o único, e tropeçou no céu como se ouvisse música, flutuando no ar como se fosse sábado. Amou daquela vez como se fosse a última. E, entusiasmada, foi ao cio da terra, debulhar o trigo, decepar a cana e fecundar o chão. Assim, meu caro amigo, me perdoe, hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão, mas, apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Veja bem, você que inventou a tristeza, tenha, pois, fineza de desinventar. Olhe nos olhos, morra de ciúme, enlouqueça, obedeça, como de costume. Mire-se no exemplo das mulheres de Atenas. Oh! Bárbara, Bárbara, nunca é tarde, nunca é demais. Onde estás? Olhe nos olhos, pois quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei. Eu te estranhei. Me debrucei sobre o teu corpo e duvidei. Hoje a gente nem se fala, e a festa continua, suas noites são de gala, nosso samba ainda na rua. Quem te viu, quem te vê.
Não, não chore ainda não, que ainda existe um violão e nós vamos cantar, felicidade aqui, pode passar e ouvir e se ela for de samba há de querer ficar. Oh, seu padre, toque o sino, que é pra todo mundo saber que a noite é criança, que o samba é menino, que a dor é tão velha, que pode morrer. Chico, de fato, a dor é tão velha e pode morrer, por isso olê olê olê olá. Amiga amada me perdoa, se insisto à toa, mas a vida é boa, para que cantar. O samba vem aí. Um samba tão imenso, que o próprio tempo vai parar pra ouvir. É certo que tem dias que a gente se sente como partiu ou morreu. A gente vai contra a corrente, até não poder resistir, na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir. Tudo um dia a fogueira queimou. Tudo ilusão passageira, que a brisa primeira levou. Ah!, se todo mundo sambasse, seria mais fácil viver. Vem que passa todo o meu e o teu sofrer. Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor. Conheço as pedras do caminho. Vou colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto, sem maltratar meu coração. E vou voltar. Sei que vou voltar para o meu lugar, porque sempre há um dia que se chega bem diferente do jeito sempre de se chegar. Olha-se a amada dum jeito mais quente do que sempre se costuma olhar. E se enlaça cheio de ternura e graça com mil abraços a dançar. É tanta a felicidade que a cidade se ilumina, beijos loucos são dados e roucos gritos sussurrados. Exortemos todas essas mulheres buarqueanas. Rita, que levou meu sorriso no sorriso dela. Carolina dos olhos fundos. Teresinha do primeiro, do segundo e do terceiro. Madalena, que foi pro mar. Januária, que até o mar faz maré pra chegar mais perto dela. E Geni, um poço de bondade, bendita Geni! E palmas para Chico Buarque de Hollanda, que nunca vai passar. Passaredo.
Edição Nº 15100
Chico Buarque de Hollanda
Aureliano Neto
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