Aureliano Neto*

Passado o período carnavalesco, fui provocado por um amigo, desses que nos acompanham nas horas certas e incertas, e pus-me a meditar sobre algumas chatices que já estão se enraizando em nossa vida, de tal modo que, em alguns momentos, assumem a proporção da insuportabilidade e mesmo da perturbação, que extravasam as fronteiras da individualidade para alcançar e contaminar o meio social. Também, a par disso, há as novidades, que são ora amenas, agradáveis, ora trágicas.
Esse meu amigo, pensativo e num sestro de passar o dedo indicador nos lábios, me pergunta sobre o celular. Redargui: - Em que sentido me indagas? Respondeu de imediato: - De modo geral, diz respeito ao uso, enfatizou. Disse-lhe sem deixar pairar laivo de dúvida: - Trata-se de um meio de comunicação muito útil e que se encontra disseminado em todos os segmentos (pobres, ricos ou miseráveis), sem estabelecer discriminação de nenhuma ordem. Com certeza, afirmei, é o instrumento do mundo contemporâneo que personifica a democratização do consumo. Meu amigo refletiu um pouco, cabeça baixa, coçando os seus ralos cabelos embranquecidos pelo tempo que a vida lhe permitiu viver. - Mas, acentuou num repente, como se estivesse afirmando, você não percebe algum abuso na utilização desse aparelhinho. Realmente, respondi-lhe.
De fato, ressaltei-lhe: não existe coisa mais desagradável do que uma pessoa, em recinto público, a falar, em voz alta e estridente, no celular, como se estivesse na sala de estar ou na cozinha de sua casa, tratando de seus assuntos íntimos, mas dando a conhecê-los a quem esteja em sua volta. Lembrei então de uma senhora no metrô, num dos trens. Falava sem trégua com o seu interlocutor, dando ênfase pública aos assuntos de que tratava com o desconforto da voz alta, obrigando a todos os passageiros que a circundavam a tomar conhecimento das suas intimidades, além de que perturbava o sossego de quem quer fazer a viagem, ainda que de uma estação para outra, sem ser obrigado a tomar conhecimento de problemas pessoais de cada um. Em outra ocasião, estando num restaurante desses self service, em que as filas se agigantam e todos estão ali para fazer uma refeição rápida, encher o prato e ir para a mesa, percebi um pouco à minha frente uma jovem, com saia curta e blusa que quase deixam desnudados os seios, que estava ao celular. E a fila andando. Ela no celular. Serviu-se no celular. Foi para a mesa no celular. Comeu no celular e levantou-se para ir ao caixa com o celular enterrada no ouvido direito. Pois bem. Pensei cá comigo. É a nova geração, que sai o útero da mãe para ter como seu primeiro brinquedo um celular, daí a impossibilidade de viver sem esse moderno instrumento em que as pessoas facilmente se comunicam e, não raras vezes, perturbam os outros.
Quase que no mesmo dia, encontrei um vendedor de guarda-chuvas, desses que negociam seus produtos nos semáforas, que me perplexo. Porém não foi uma perplexidade de grandes proporções. Ocorre que o sinal fechou e o vendedor ao invés de aproveitar aquele momento e tentar realizar as vendas, estava preso a um celular, percorrendo freneticamente um canteiro que dividia a avenida. Ainda assim, produzi a seguinte reflexão: - O vendedor de guarda-chuvas estava a tratar de algum assunto sério, haja vista que o som de sua voz dava para ser ouvido no interior do carro onde me encontrava. Talvez, quem sabe, estivesse fazendo uma venda por telefone, ou solucionando algum conflito de amor mal resolvido. O sinal abriu, fomos adiante. Deixei o vendedor grudado ao celular.
Nalgumas cidades, há lei estadual ou municipal que proíbe o uso do celular no interior de agências bancárias. Esteja o cliente em caixa eletrônico ou não, lhe é vedado fazer uso do aparelho. Essa providência profilática ou de prevenção foi adotada em razão de que quadrilhas de assaltantes, recorrendo ao celular, avisavam os comparsas fora da agência qual a vítima ideal para ser roubada. Então o uso do celular, em casos tais, passou a ser uma roubada para inúmeros consumidores bancários que, de forma imprevidente, faziam saques de alto valores monitorados pelos expertos e espertíssimos assaltantes.
Com se vê, tudo se pode com celular, até mesmo ser mal educado, ou ainda praticar atos ilícitos.
Não conformado com essas reflexões, o amigo me perguntou sobre o julgamento do caso Eloá ou Lindemberg e da Lei da Ficha Limpa. O primeiro pelo tribunal do júri, e o segundo pelo Supremo Tribunal Federal. Quanto ao de Lindemberg, o julgamento, convenhamos, foi transformado num macabro e inconcebível reallity show, espécie de BBB, muito na moda ultimamente. Para quem gosta, não existe chatice maior, ficar na televisão para ver, como num circo dos horrores, um acusado ser massacrado até ser condenado a 98 anos de prisão. Já o julgamento da Ficha Limpa, embora necessário, não precisava nem o Supremo perder tempo proferindo a sua histórica decisão, porquanto a mídia havia dado o veredicto, inclusive antecipando os votos dos ministros. Aliás, sobre o STF, infelizmente a mídia, por seus representantes, afirmou que "tende a jogar para a plateia quando se trata de temas sociais". Em face disso, a presunção de inocência, garantia constitucional, foi para lata do lixo, assim como o princípio da irretroatividade da lei.
Entre as chatices do celular e desses julgamentos popularescos, há a novidade trágica, pouco divulgada, que foi a morte de Maurício Corrêa, ex-presidente da OAB (baluarte da luta contra o regime militar), ex-ministro da justiça e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, no tempo em que as garantias constitucionais, sagrados direitos do cidadão, não eram relativizadas. Uma pena!

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