Passado o período das festas de final de ano e ainda na ressaca dos seus efeitos, fui provocado por um amigo, desses que estão conosco nas horas certas e incertas, e pus-me, com alguma resistência (preconceituosa), a meditar sobre algumas chatices que já estão se enraizando (ou já enraizadas) em nosso dia a dia, de tal modo que, em alguns momentos, assumem a proporção da insuportabilidade social, misturada com o incômodo perturbador, uma vez que extravasa a fronteira da individualidade para invadir e contaminar a tranquilidade do cantinho onde nos refugiamos das agressões cada vez mais incivilizadas dos nossos sádicos torturadores. A par disso, há as novidades, que podem ser ora amenas, ora agradáveis, ora trágicas.
Esse meu amigo, muito pensativo, e num sestro próprio de passar o dedo indicador nos lábios, me pergunta sobre o celular. Respondi indagando: - Em que sentido queres saber? Esclareceu: - De modo geral, enfatizou, diz respeito ao uso ou abuso. Disse-lhe sem deixar pairar qualquer laivo de dúvida: - Trata-se de um meio de comunicação muito útil e que se encontra disseminado em todos os segmentos sociais (pobres, ricos ou miseráveis), sem discriminação de nenhuma ordem. Com certeza, afirmei, é o instrumento do mundo contemporâneo que personifica a democratização do consumo e da comunicação. Meu amigo refletiu um pouco, cabeça baixa, coçando os seus ralos cabelos embranquecidos pelo tempo que a vida lhe permitiu viver. – Mas, acentuou num repente, como se estivesse afirmando, você não percebe algum abuso na utilização desse aparelhinho. Realmente, respondi-lhe secamente.
E disse-lhe mais: - Não existe coisa mais desagradável do que uma pessoa, em recinto público, a falar, em voz alta e estridente, no celular, como se estivesse na sala de estar ou na cozinha de sua casa, tratando de seus assuntos íntimos, mas dando a conhecê-los a quem esteja em sua volta. Lembrei então de uma senhora num dos trens do metrô. Falava sem trégua com o seu interlocutor, dando ênfase pública as suas intimidades de que tratava com o desconforto da voz às alturas, obrigando a todos os passageiros que a circundavam a tomar conhecimento dos seus negócios de família, além de que perturbava o sossego de quem quer ficar quieto em seu canto, remoendo os seus próprios problemas, sem ser obrigado a tomar conhecimento das agruras pessoais de cada um. Em outra ocasião, estando num restaurante desses self service, em que as filas se agigantam e todos estão ali para fazer uma refeição rápida, encher o prato e ir para a mesa, percebi um pouco à minha frente uma jovem, com saia curta e blusa que quase deixam desnudados os seios, que estava ao celular. A fila andando. Ela no celular. Serviu-se no celular. Foi para a mesa no celular. Comeu no celular e levantou-se para ir ao caixa com o celular enterrado num dos ouvidos. Aí, pensei cá comigo: é a nova geração robótica, que sai do útero da mãe para ter como seu primeiro passatempo o celular. E ainda tem os idiotas da objetividade que afirmam com a ignorância pedagógica da irresponsabilidade: - Que menino inteligente! E a educação, ô!
Num desses dias, fui a um restaurante de nossa cidade. À mesa, um casal. Desses que, se se amam, não costumam fazer cenas explícitas de paixão recíproca. Pelo menos, em conversa amena. Os dois estavam numa solidão patológica. Solidão a dois. A mulher dedilhava, com o olhar fixo, um celular; o homem não perdia o seu precioso tempo com conversa fiada e estava com a cabeça enterrada no visor de outro aparelhinho. Ambos os “convivas” pareciam que nada tinham a ver um com o outro, a não ser o fato de estarem juntos, mas separados, na mesma mesa. A cena parecia de um filme noir em que a separação definitiva dependia de os celulares serem desligados e a solidão se prolongar pela noite ou pela vida inteira.
Em alguns estados, como São Paulo, há lei que proíbe o uso do celular no interior de agências bancárias. Esteja o cliente em caixa eletrônico ou não, lhe é vedado fazer uso do aparelho. Essa providência preventiva foi adotada em razão de que quadrilhas de assaltantes recorrem ao celular para avisar aos comparsas qual a vítima ideal para ser afanada, na famosa saidinha. Em casos tais, o uso do celular passou a ser um drama para os consumidores bancários que, de forma imprevidente, fazem saques de altos valores monitorados pelos espertalhões do crime.
Ensinavam os liberais clássicos que a essência da liberdade é ausência de interferência alheia. Todos devem fazer o que quiserem, nos limites da lei. É certo: qualquer um vive a sua própria vida, porém em harmonia e respeito à paz e ao sossego dos outros. Essa é a regra maior da civilidade.
Edição Nº 15509
Chatices da pós-modernidade
Aureliano Neto
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