Aureliano Neto*

Todos nós sonhamos em chegar lá. Viver cem anos, eis o grande desafio. Tanto isso é verdade que, quando ocorre a separação definitiva com a vida deste sofrido planeta, não raramente, alguém, curioso das razões do desenlace, faz a pergunta clássica: Qual a sua idade? A resposta é imediata: - Oitenta anos. Logo, vem o suspiro do conformismo: - Ah!, e, complementando, o arremate da fatalidade: - Também! Como se oitenta anos de vida fossem o limite de tudo. Nada disso, replico com a veemência e com a vontade de vencer Matusalém. Viver oitenta anos é façanha de absoluta necessidade. Só não vive quem é besta, ou não pode. A medicina aí está a nos exortar a ultrapassar essa fronteira do espanto, da dúvida. Os laboratórios que fabricam milagrosos medicamentos estão a exigir da gente que intensifiquemos a maratona para vencermos sempre a barreira da idade final. Um dia, quem sabe, não haverá mais limites. Seremos uma espécie de Noé, envelhecidos, mais ativos, sem dilúvio, para não nos aporrinharmos com a necessidade da reprodução e de ficarmos a selecionar casais de animais, para que a espécie se perpetue. Ah!, vem a interjeição do espanto, que vivamos cem, duzentos anos, se assim for possível. Caminhemos de cabeça erguida. Deixemos de pisar na dúvida do descrédito.
A bem da verdade, não era disso que estava querendo falar. O assunto é bem outro, embora trate de idade. Só que o cidadão, se é que assim possamos chamá-lo, completou cem anos de vida - diga-se, em reforço dos seus relevantes serviços prestados, profícua vida! Veio ao mundo por acaso. Alguém, rechonchudo, melhor dizendo, gordo, com dificuldade para abaixar-se e amarrar os laços do sapato, resolveu dar-lhe vida e solucionar o seu problema pessoal e, ao pô-lo no mundo, também o de muita gente. São cem anos de serviços bem prestados, sem discriminação de pesos e medidas. Isso quer dizer que gordo ou magro se beneficiaram dos seus serviços. As reclamações existem. Já ouvi muitas delas. Eu mesmo não deixei passar em vão alguns dos seus deslizes. Esbravejei, com imprecações graves, quando precisei dos seus serviços e, na hora agá, falhou. Essa situação de desconforto se deu, algumas das vezes, em viagens, no aeroporto, na sala, no quarto, em hotel. Ocorreu não tantas vezes, mas vivi alguns contratempos pela deficiência dos seus serviços. Mas tem-me sido útil, não nego. Nunca utilizei seus préstimos em sapatos. Lá mais para trás, era pouco usado. Os botões e cadarços eram de uso mais comum. Aos poucos, foi tomando seus lugares. Ora, vejam bem: cem anos não são cem dias. Convenhamos, é tempo bastante para se firmar no contexto da vida de todos, como costumam afirmar do alto de sua sabedoria os sociólogos.
Antes de completar o centenário de vida, ao vir ao mundo, tinha uma aparência desagradável. Assim o descrevem: era composto de duas bases flexíveis, travadas e soltas por um dispositivo deslizante, montadas nos dois membros, lembrando, afirmam as pessoas que o conheceram no berço do seu nascimento, o que, visualmente, mais parecia um instrumento de tortura medieval. Talvez o fosse, quem sabe. Inicialmente, foi usado em sapatos. Depois, se propagou de tal maneira que é visto em tudo em que é lugar: bolsa, blusa, calça, camisa, roupas íntimas, bermuda e tantas outras coisas. A sua precípua e nobre função é facilitar a nossa vida. Não se compõe de laços ou de botões. Surgiu com finalidade revolucionária, para desbancar essas coisas antigas. Tanto que tem os dentes presos a cadarços, que se unem quando se fecha, encaixando-se de modo intercalado, e, ao abrir-se, dá-se o desencaixe, bastando que se faça uso do cursor, deslocando-o de cima para baixo, ou vice-versa, ou de lado, a depender de como se encontre fixado. Depois, que veio ao mundo, passados cem anos, adotou outra postura mais chique. É visto com bastante freqüência. Em bolsas e roupas mais sofisticadas. Está nos salões mais elegantes. E gosta dos palácios, sem desprezar os casebres, ou ainda nossas favelas.
Pois bem. É hora de dar o nome aos bois. O texto está aos poucos chegando ao fim. E urge denunciar o nosso personagem, que, quando chegou ao nosso Brasil de Pero Vaz Caminha, recebeu o elitizado nome de fecho éclair. Nunca procurei saber por que razão. Na minha infância, chamavam-no com uma expressão esquisita, própria do nordestino maranhense. Querem saber como era chamado? Digo logo, sem pestanejar: riri. Isso mesmo: riri. Minha tia Morena, que me criou e educou, era costureira, e, quando precisava, para roupas que fazia de encomenda, do fecho éclair ou zíper, dizia-me, com a voz grave da incumbência: - Vai lá na quitanda e compra um riri. Pois é, o riri, o zíper ou, num afrancesamento mais sofisticado, o fecho éclair fez centenário por esses dias. Continua, apesar da idade, ocupando posição de destaque, porém mais popularizado, já que pode ser encontrado no Shopping JK, de São Paulo, ou na banca de um camelô de qualquer cidade. É de uso democrático, encontrando-se em poder do pobre ou do rico. Não tem preconceito econômico, de cor ou de raça. Rubem Braga não o esqueceu. Numa de suas belíssimas crônicas, ele, numa linguagem metafórica, para demonstrar a sua humildade, se refere ao zíper da vaidade que lhe fecha a boca. O zíper, renovado pelos cem anos de vida, está firme e forte, frequentando todos os lugares, dos mais íntimos aos mais populares, sem perder a sua vocação de servir, desde quando chegou às terras do Pau Brasil.
 

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