Começo dizendo o óbvio: estamos em pleno século XXI – não parece, mas estamos -, e parte desse centenário do tempo já foi consumida. Nesse transitar, até aqui chegarmos, vivemos o teocentrismo, em que Deus ditava todos os nossos desejos, o renascimento, no qual o humanismo passou a ser o centro da arte e da ciência, o iluminismo, fundamentado na razão e na luta pelo exercício amplo da liberdade. Passamos pela modernidade e nos encontramos na pós-modernidade, em que o mundo praticamente renuncia do antropocentrismo para eleger um novo Deus, que, num leve toque mágico, resolve todas as nossas dificuldades. O ser humano já não é o centro de nossas preocupações. Ou se é, apenas de forma periférica para atender aos nossos desejos momentâneos. Curam-se os males e educam-se os nossos filhos à distância, embora eles estejam bem aí, ao lado, sentados bem próximos a nós, na mesa de casa ou de um restaurante qualquer. É a convivência virtual. Convive-se e quase não se convive, embora se pense conviver.
Tempos atrás, o poeta Castro Alves, que sentia o pulsar do mundo, num grito condoreiro, revoltou-se com o suplício da escravidão – a escravidão negra. E manifestou a sua revolta com o poema Vozes d’África, em que questiona Deus sobre aquela cruel situação dos negros escravizados: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito. / Onde estás, Senhor Deus?...” O poeta clama a Deus, numa súplica de dor, pelo fim das injustiças contra os seus filhos negros que eram trazidos agrilhoados da África. Mas em vão. A escravidão, o grande capital da classe dominante, que detinha e detém o poder, persiste com a crueldade encoberta pela força bruta do mercado.
Eduardo Galeano, escritor e pensador uruguaio e autor da célebre obra As Veias Abertas da América Latina, conta-nos uma história muito interessante a respeito de dois ícones da luta contra a escravidão e o racismo, ocorrida em um dos países mais racistas desse nosso mundo do século XXI. A história é esta:
A mãe e o pai dos direitos civis
Num ônibus que circulava pelas ruas de Montgomery, Alabama, uma passageira negra, Rosa Parks, negou-se a ceder seu assento a um passageiro branco.
O motorista chamou a polícia.
Chegaram os guardas, disseram: lei é lei, e prenderam Rosa por perturbar a ordem pública.
Então um pastor desconhecido, Martin Luther King, propôs, em sua igreja, um boicote contra os ônibus. E propôs assim:
A Covardia pergunta:
– É seguro?
A Conveniência pergunta:
– É oportuno?
E a Vaidade pergunta:
– É popular?
Mas a Consciência pergunta:
– É justo?
Ele também foi preso. O boicote durou mais de um ano e desencadeou uma maré irrefreável, de costa a costa, contra a discriminação racial.
Em 1968, na cidade sulina de Memphis, um tiro arrebentou o rosto do pastor King, quando ele estava denunciando que a máquina militar comia negros no Vietnã.
De acordo com o FBI, ele era um sujeito perigoso.
Como Rosa. E como muitos outros pulmões do vento.
Escravidão e racismo não nos deixaram. Neide. Sim. Neide Pereira da Silva é aquela senhora que o MPT encontrou numa situação análoga à de escrava. Trabalhava há 22 anos para uma família que a mantinha pior do que um animal desses enfeitadinhos, jogada num quartinho de depósito de trastes. A empregadora defende-se: o único serviço que lhes prestava era cuidar dos cachorros e às vezes passava uma camisa do seu marido para ajudá-lo. “Sabe aquela coisa?” E por aí vai. D. Neide, devo-lhe esta referência, era apenas um traste no meio dos trastes. Esse é o novo mundo e o novo século. Quase nada mudou.
Membro da AML e AIL.
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