D. Luciana dos Santos Nogueira, sei que a senhora está passando por um momento de dilacerada e sofrida dor. O título dessa cartinha é longo, mas se faz necessário, D. Luciana, até porque, não sei se a senhora percebeu, paira um silêncio impiedoso. Na verdade, um silêncio de indiferença criminosa. Ainda assim, resolvi escrever-lhe. Saí do mutismo da indiferença. Mas advirto: não quero me intrometer na sua dor e angústia. As forças que mataram o seu marido, que dirigia um modestíssimo Ford KA, de cor branca, a transportar a sua família, entre os quais uma inocente criança de 7 anos, é uma força bem forte, principalmente neste cruel momento de grandes retrocessos, em que a vida perdeu significado humano, sobretudo, D. Luciana, quando o alvo é uma pessoa negra e pobre. Foi o caso do seu amado e chorado marido, o músico Evado dos Santos. O noticiário, descompromissado com o sentido humanístico da vida, informa a quem se interessar que foram mais de 80 tiros de fuzil. Três deles atingiram o seu cônjuge (ou como andam dizendo por aí, o seu “conge”), que, cruelmente brutalizado, tombou morto sobre o volante do carro com que conduzia a sua família para um chá de bebê. Vi a foto do seu choro incontido numa revista semanária. A senhora estava sendo amparada na sua dor por seus amigos ou parentes, todos negros e pobres. Não vi nenhum medalhão, desses que se chamam autoridade.
D. Luciana, embora na sua profunda dor – a dor de quem perde um ente querido e amado, o marido e o pai dos filhos -, no primeiro momento, foi divulgado, como conduta óbvia, apenas o fato em si. Enfim, D. Luciana, deu-se destaque o gasto de mais de 80 balas de fuzil, uma despesa que deve ser justificada ao erário. E, nesse momento inicial, quando os fatos ainda estavam vivíssimos, para justificar as despesas com as balas, veio a primeira justificativa: os mais de 80 tiros foram dados em reação dos nossos bravos soldados à “injusta agressão” de dois criminosos. Tenho a impressão, D. Luciana, que houve uma certa confusão dos nossos bravíssimos soldados, que devem ter confundido a senhora, ou seu marido, ou, quem sabe, a criança de 7 anos, com os dois criminosos e a “injusta agressão”, que motivaram os disparos. Ainda bem. Logo depois do assassinato, mudaram de ideia.
D. Luciana, como justificativa para consolá-la, embora entenda que é uma tarefa das mais inglórias, quero dizer à senhora que estamos vivendo um mundo em que os fracos ou aceitam a situação ou sucumbem. Veja bem: o seu marido Evaldo, atingido com três tiros letais, sem ter praticado um reles pecado, era músico e trabalhava como segurança de uma creche. Imagine, D. Luciana, quantos tiros não seriam dados em um pobre coitado que sequer trabalha e vive a perambular por esse mundo de nosso Deus, matando a fome com migalhas da solidariedade de uns poucos. Digo isso, D. Luciana, mas sei que não servirá de conforto. Mas é melhor dizer do que ficar encastelado no silêncio da indiferença.
Por que desta carta? Nesta quinta-feira santa, lembrei-me da senhora, D. Luciana. Num instante efêmero, vivi a empatia do seu sofrimento, lembrando a última ceia de Cristo, quando humildemente Ele, num de servir, lavou os pés dos seus apóstolos e partiu o pão e bebeu o vinho do sacrifício para nos livrar desses pecados que estão a contaminar a nossa insolidária sociedade. Por isso mesmo, D. Luciana, confesso-lhe: resolvi romper esse silêncio, repito: o silêncio da indiferença, que me colocaria, por omissão, como cúmplice desse cruel crime de que foi vítima o seu adorado marido, o músico Evado dos Santos.
É triste. Muito triste, D. Luciana. O silêncio e a omissão são tão trágicos, quanto o próprio assassinato do seu marido. O governador do Rio de Janeiro, conhecido pelo nome de Wilson Witzel, que manda os seus policiais atirar na cabecinha dos supostos criminosos, instituindo assim a pena de morte, não permitida pela Constituição Federal, ao tomar conhecimento do assassinato do seu marido, disse, veja bem, D. Luciana: “Não me cabe fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos.” Ousa-se perguntar: a quem cabe? Se ao governador não cabe nem sequer falar, deve-se como opção consultar um ou outro chefe de milícia para tecer algum juízo de valor a respeito desse escabroso fato. Pois bem. Fico por aqui, D. Luciana, lamentando o seu sofrimento. O qual solidariamente é de todos nós.

* Membro da AML e AIL.