Aureliano Neto*
Nesse exato momento estou a ouvir o excelente CD de Carlinhos Vergueiro, que juntamente com Cristina Buarque, Wilson das Neves, Marcelinho Moreira e Chico Buarque, interpreta as inesquecíveis músicas de Nelson Cavaquinho, que as construiu, durante toda a sua vida de boêmia, com vários parceiros, entre os quais Guilherme de Brito, espécie de alter ego poético, e Zé Ketti, com o qual fez O meu Pecado, um dos sambas mais bonitos do cancioneiro popular brasileiro, em que os autores desse preciosidade (Nelson e Zé Ketti) confessam seus pecados, como se a pedirem perdão dos excessos de ter amado tantas mulheres, embora tenha o tempo passado e andado "bebendo por aí pela cidade".
A propósito das lembranças que nos provocam as músicas de Nelson Cavaquinho, está em cartaz, em alguns cinemas, o filme As Canções, em que dezoito personagens escolhem uma música de sua predileção e falam sobre a sua relação afetiva com canção escolhida. Fui ao cinema, no Espaço Unibanco, para ver essa tocante e esteticamente bem elaborada obra. Vale a pena. E como! São noventa minutos nos quais as pessoas vão se sucedendo em cena, citando as suas músicas e fazendo referência a fatos relevantes de suas vidas amorosas ou desamorosas. O filme é um poema visual, sem desbancar para os excessos apelativos do romantismo novelesco. Além das músicas conhecidas, bregas ou não, que fizeram sucesso num passado não tão distante, há as mais recentes, com referências a Roberto Carlos, Vinícius de Moraes, Tom Jobim e Chico Buarque (Retrato em Branco e Preto). Dois dos participantes, que perderam entes queridos (pai, mulher, sogra e mãe), ao fazerem a escolha de suas músicas, apresentaram criação própria, comprovando que a dor da perda nos faz muitas vezes poetizar nossos sentimentos, uma vez que as angústias de que padecemos são universais, alcançando-nos a todos e nos obrigando a transformar, num escapismo justificável, sofrimento em lirismo. Por mais que sejamos herméticos ante os acontecimentos trágicos, superamos a dor pela poeticidade que está embutida no interior do nosso inconsciente.
As Canções me levaram a um passado distante, que fui rebuscar quando ainda menino aprendiz de linotipista no Diário da Manhã, em São Luís. Havia poucas rádios.Todas AM. Eram a Difusora, a Ribamar e a Timbira. Mário Leonardo, que, anos depois veio a ser promotor de justiça em Imperatriz, e uma das vozes mais brilhantes do rádio maranhense, tinha um programa na Timbira, cujo título era mais ou menos assim Em cada Canção uma História. Os ouvintes mandavam uma carta, relatando o seu drama. A carta era lida, de forma dramática, por Mário Leonardo e, em seguida, era tocada uma música que se adequava à história do missivista. Esse programa tinha grande audiência. Sempre que possível, estava de rádio ligado para ouvir as canções e os dramas pessoais (frustrações amorosas) relatados nas cartas. E apreciava a entonação dramática dada pela voz grave de Mário Leonardo.
Os tempos mudaram. Não tanto, embora seja repetitivo nessa citação. Culturalmente, toda canção reflete seu tempo; tem contexto histórico, e é a partir daí que é possível fazer juízo de valor. Em As Canções, todos os personagens que fizeram a escolha de sua música e contaram a história de sua vida, tiveram a coragem de trazer a público as suas experiências afetivas. Expuseram, enfim, os sues sentimentos, onde o amor representa a centralidade dessas angústias,ora superadas, em alguns casos, ou mantidas indeléveis em outros.
Ouvindo o CD de Carlinhos Vergueiro, encontro no samba Beija-flor, uma das ontológicas criações de Nelson, mas de pouca divulgação, essa mensagem lírica em que o artista mistura saudade com felicidade, ao poetizar na primeira parte "Vai, beija-flor / Beija a roseira / Faz me lembrar / Do meu amor / Hoje estou triste / Sinto saudade / Volta pra mim felicidade". Não há dúvida de que certas canções marcam uma vida, a dois ou ainda que solitária. Assim, por refletir seu tempo, são sentidas no âmbito histórico pessoal, íntimo, ou, de forma mais abrangente, no contexto social, como ocorre com Caminhando, música de Vandré, cuja mensagem tinha como finalidade denunciar uma situação política, vivida no país, que cerceava todas as liberdades, entre as quais a de expressão artística.´
Passei por várias fases musicais. Do bolero (de Anísio Silva) e do samba-canção (de Nelson Gonçalves) até chegarmos à bossa nova de Nara Leão, João Gilberto, Vinícius, Bôscoli, Menescal, Carlos Lyra e tantos outros. Custódio Mesquita, Zequinha de Abreu, Assis Valente, Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Ary Barroso, Herivelto Martins, Nelson Cavaquinho, Cartola, Dorival Caymmi, Lamartine Babo, Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano, Gil, todos, incluindo o gênio Noel Rosa, fizeram e fazem canções, que nos ajudam a sair do abismo entre a lucidez e a treva. Cada canção nos soergue e estimula na fermentação e fortificação do amor, que o poeta eterniza na arte de profetizar os nossos afetos. Por isso, Mais que Nada, Bandeira Branca, Carinhosos, Se Todos Fossem Iguais a Você, Folhas Secas, Caminhemos, As Rosas não Falam, Chega de Saudade, Serenata do Adeus, Aquarela do Brasil, Samba da Bênção, e tantas e tantas orações em forma de canção, e todos os cantos de amor de Roberto Carlos, cujo acervo dediquei à minha querida Jacirema, desde os nossos primeiros momentos. São as essas canções que fazem toda uma vida e que são difíceis de esquecer. Saramago, numa de suas crônicas, diz que nós somos filhos das nossas obras. Não o contesto. Mas acrescento: somos também filhos dos nossos sentimentos.
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