Aureliano Neto*

O tempo de todos nós é sedimentado por canções. Nascemos com a canção alegre do choro da vida e morremos com o som triste da cantiga das lágrimas do fim. Nesse permeio, entre uma ponta e outra, que, na visão shakespeariana do diálogo entre Hamlet e Horácio, o tempo de vida é só contar "um", muitas canções marcam o nosso itinerário, como a fixar, no trajeto, pontos referenciais para a volta. Uma espécie de fio de Ariadne, a nos possibilitar sair do labirinto da inconsciência. E tantas são as canções!... Não há como delas fugir. Elas são o sapo de macumba enterrado no nosso inconsciente, isso na metáfora de Nelson Rodrigues. Verdade: está bem dentro de todos nós. De uma hora para outra, surpreendemo-nos cantando (???) repetidamente alguma música, a nos perseguir quase que o dia todo. É o grito do inconsciente, que, como se fosse um apito de fábrica - relógio antigo do nosso operário -, a alertar-nos sobre algum fato sepultado lá no passado, porém a dizer-nos que não se encontra tão distante. A canção, que, insistentemente, vem à memória, muitas vezes lembrada pelo refrão, é o fio da lembrança que projeta a imagem móvel da eternidade, no dizer de Platão em Timeu, que está dentro de nós mesmos.
Nos cinemas culturais de São Paulo - não sei se foi exibido em nosso Estado -, passou um filme, muito bem produzido e de uma simplicidade quase que franciscana, mas, sem ser chato e piegas, estético e enternecedor. As Canções. Todo o desenrolar das cenas conta a história de cada personagem, tendo como fundo do relato uma canção. O entrevistado, sentado numa cadeira, responde as indagações feitas por quem dirige o filme, e, como no programa Ensaio, da Cultura, o inquiridor no anonimato. O tema básico, essencial desse filme, é o sentimento humano, expressado nas canções que marcam a vida de cada participante, que, desafinado ou não, canta a música que representa momento importante na sua vida. Alegre, ou triste. É um filme, sem necessidade de maiores comentários, essencialmente sobre o amor. No início, a personagem é uma senhora negra, recatadamente vestida, que relata a sua desventura amorosa, sinalizada pelo samba-canção Último Desejo, de Noel Rosa, cuja primeira estrofe reflete todo o sentimento da quebra da relação amorosa e do não esquecimento: "Nosso amor que eu não esqueço / E que teve o seu começo / Numa festa de São João, / Morre hoje sem foguete, / Sem retrato e sem bilhete, / Sem luar, sem violão." E prossegue o filme, em montagens cênicas comoventes, sendo ouvidas várias outras pessoas, nem sempre caracterizando seus depoimentos interrupção de um relacionamento amoroso, mas, às vezes, até mesmo a construção de uma vida amorosa. Ou, ainda, como ocorreu num dos relatos, em que o entrevistado se refere à música Esmeralda, que fez grande sucesso na interpretação de Carlos José, e que lhe ficou como lembrança de sua mãe. E essa lembrança se deu em razão de ser cantada por ela, quando na faina diária da máquina de costura, ao fazer vestidos para noivas.
Nesse filme de Eduardo Coutinho, cada lembrança das personagens, associadas a uma canção, marca a trilha sonora do sentimento de toda uma vida. Pode-se assim dizer, é um musical, essencialmente humano. O filho que perde o pai, num momento de encontro afetivo. O desenlace de uma vida amorosa. A não correspondência do amor, ou a correspondência em excesso. A mãe que é lembrada, porque cantava Esmeralda. O marido que fez a mulher sofrer e que se arrepende, ao extravasar as músicas de Silvinho. O viúvo, feirante, que não esquece a mulher morta, embora tenha realizado novas núpcias. O retrato em branco e preto (de Chico) que é mote do encontro e do desencontro. Enfim, há um desfile de dramas, cujo enfoque é recheado de ternura. Um documentário centralizado na afetividade.
A lembrança desse filme, que vi duas vezes (ao lado de Jacirema, Bernadete e do amigo Lourival Serejo), me trouxe à memória outras trilhas sonoras, que têm, como o fio de Ariadne, a marca do tempo da existência de todos nós. Lembrei-me de Noel Rosa, de tão curta vida (apenas 26 anos), no entanto eternizado pela sua criação artística. Não esqueci de Cartola e Caymmi, que nos deixaram preciosas peças musicais, como As Rosas não Falam, O que é que a Baiana Tem e É Doce Morrer no Mar e tantas e muitas outras. Também me vieram os inesquecíveis Nelson Cavaquinho e o seu parceiro Guilherme de Britto, que nos legaram A Flor e o Espinho, em versos que ficarão para a eternidade: "Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor / Hoje, pra você eu sou espinho / Espinho não machuca a flor / Eu só errei quando juntei minhalma à tua / O sol não pode viver perto da lua." Este último, de uma força poética intraduzível. Sente-se apenas. Interpretá-lo, com o intuito de se ter a vaidade de dizer que o fez, é mesmo que contrariá-lo na essência e forçar o sol viver perto da lua. Volto a Hamlet: Nelson e Guilherme esvaziaram toda a sua bolsa de metáforas, criando uma imagem poética tão profunda, que só Vinícius e Tom, já na bossa nova, quando o amor deixa de ser dor e passa a ser sorriso e flor, fazem Se Todos Fossem Iguais a Você e falam da esperança divina de amar em paz para rematarem que "se todos fossem iguais a você, que maravilha viver". Pois é, viver a vida pelas canções pode ser um encontro de cada um nós dentro de nós mesmos, ou pode representar um autoexílio caracterizado por sentimentos não correspondidos. Enfim, cantar é amar. Isso desde Beijinho Doce, que, no excesso da época, diz que, depois do beijo doce na amada, nunca mais se ama ninguém. Antonio Marcos, bem recentemente, na voz de Roberto Carlos, na canção E não Vou mais Deixar Você tão Só, faz a exaltação da vida e da espera de um grande amor, para obrigar-se poeticamente a nunca mais deixar a amada tão só. Por isso, são essenciais as canções feitas para todos nós, pois elas ficam, embora muitas vezes o amor esteja apenas na lembrança, que as canções perenizam, aprisionando-nos.

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