Aureliano Neto*
Sou patologicamene pessoano. Por isso, alinho-me a sua poética quando, em O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, reflete o seu pensar estético afirmando que “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.../Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/Porque eu sou do tamanho do que vejo/E não do tamanho da minha altura.../Nas cidades a vida é mais pequena/Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro./Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,/Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,/Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,/E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.” O mundo, tempo e a vida vistos e sentidos de nossa aldeia. Somos do tamanho do que somos. Da nossa cidade, contemplamos o mundo, a partir de nossos valores. Não somos menores. Ao contrário, somos de uma grandeza colossal. Da grande cidade, nada se vê. As pessoas vivem presas na cadeia das circunstâncias: trabalho, competição, sobrevivência. O mundo visto do cimo de nossa cidade nos dá uma perspectiva de vida mais humanizada. Esse é um sentimento transcendental. Por isso mesmo, Caeiro poetiza mais adiante: “Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir./O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado.” Assim, fiquemos no mundo da margem de cá, na certeza de que o nosso sentimento vai além.
Às vezes, acomodados no universo da nossa aldeia, só resta recordar. Mas, confesso, é dolorido recordar. A recordação chega a ser tirânica. E mesmo frustrante. Buscar o tempo perdido é um desafio, sendo uma missão impossível de lograr êxito. O tempo que passou nos provoca a todo instante. O passado teima em nos acercar. São lembranças que exigem um exercício de reconstrução. Mas essa busca de refazimento é impossível, já que, como alguém afirmou, não existe um armazém de memórias intactas. Quer dizer: a memória não tem um reservatório que possa, intacto, ser trazido para o presente. O filho nasce, cresce, forma-se numa profissão, casa-se ou não, e vai para o mundo, fora da nossa aldeia. Resta a recordação aos pedaços, nos álbuns amarelecidos pelo tempo e, na memória, que insiste em guardar as cenas que estão no lado de cá de nossa vida. Há uma necessidade de libertação em que precisamos, como enfatiza poeticamente Caeiro, desencaixotar as nossas emoções e atravessar o rio, indo para a margem que ficou distante, porém animicamente tão perto. É verdade: nós somos o que sentimos. Se sentimos inveja, somos a inveja; se sentimentos o amor, somos o amor; se odiamos, somos o ódio.
Ah!, o cheiro do café me faz sofrer a tirania da recordação. Esse cheiro do café torrado e, depois, passado, me lembra as tardes da minha infância. Sim. Café torrado e passado às três da tarde e servido em xícara ou tigela de estanho, com bordas pretas. Quentinho!... fumegando. Saboreava-se a sua essência forte com um beiju ou cuscuz, ou mesmo com uma nesga de pão. Os mais velhos sempre o bebiam puro, com ou sem açúcar. Preferiam sentir o sabor do café torrado, sem misturar com outro tempero. Passado o deleite da tarde, conservava-se num grande bule de esmalte, de cor verde, que ficava bem ao lado da trempe, onde as achas de lenha eram renovadas para manter o fogo ativo e o café sempre quentinho. Esse café representava um momento de vida, encravado num tempo de memória, que a tirania da recordação teima em libertar do cárcere do passado.
Já disseram que os nossos sentimentos são corporais. Se não me engano, essa afirmação foi feita pelo poeta Walt Whitman. Foi dito mais ou menos assim: nosso cérebro gera nossos sentimentos metafísicos a partir do corpo. Assim, não temos um corpo, somos um só corpo, já que corpo e alma são inseparáveis. Amamos, sofremos e somos felizes de forma una – corpo e alma, numa mesma dimensão. Por conseguinte, somos eternos enquanto duramos, porquanto sentimos a partir do corpo. Uma lógica materialista, que teima em sepultar o tempo perdido.
Certa feita tive a desdita de tentar fazer um reencontro com meus amigos a adolescência. Na essência, não foi possível. Um deles, que fora um dos nossos companheiros de longas jornadas e algumas substanciosas farras, não pudera estar presente. Simplesmente morrera alguns meses antes. A sua cadeira ficou vazia. Outros, por motivos particulares, não puderam comparecer à tertúlia. Estiveram alguns. Reviver o passado, como se pretendeu, foi de uma crueldade insana. Todavia, o poeta Jorge Cooper insiste nessa possibilidade ao dizer que “Difícil é arredar o tempo/não correr para trás com o tempo/estar em eternidade no tempo.” De fato, não é apenas difícil; é impossível fazer do tempo uma etenidade. O tempo, embora nos fustigue, seja passado ou presente, é tão efêmero como todos nós somos. Tal como Caeiro, somos um guardador de rebanhos. E o rebanho que guardamos é toda uma vida, uma vida inteira que devia ter sido e que nem sempre foi.
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