Costume norte-americano, importado para a nossa terra. Os comerciantes se acertam e fazem um grande bota-fora, liquidando, a preços desafiadores, alguns produtos, que, retirados do seu estoque, não lhes venham a causar nenhum prejuízo. Estive em Belém do Pará e vi a grande confusão nas áreas comerciais. Seja o comércio de rua, seja o de shopping. Num dos shoppings, quase não se podia andar. Uma quantidade imensa de pessoas a fazer compras nas lojas que estavam promovendo liquidação. Tudo indica que a moda pegou. Vem desde 2010. Soube que por aqui a coisa andou pegando fogo. Temos trazido de fora essas novidades, coisa típica da sociedade de consumo. Provocava-se o consumidor, que é cativado para o mundo do preço baixo, que nem sempre é tão baixo, podendo ser apenas a ilusão representada pelo sacrifício econômico, para se ter alguma coisa que já se tem. É a lógica do mercado, que funciona com a perfeição do engodo, ao trabalhar com a psicologia de fomentar a necessidade, embora o potencial consumidor já esteja saciado, não precisando de fazer novas compras. Mas, como diz Ana Beatriz Barbosa Silva, na sua consumidíssima obra Mentes Consumistas, que está vendendo mais que banana em feira livre, “em uma sociedade consumista como a nossa, os valores dos mercados são ostensivamente imputados em nossa vivência diária, e isso tende a distorcer a maneira pela qual ‘moldamos’ a nossa existência”. O mercado – esse monstro da modernidade e figura indefinida – está cada vez mais inquieto e exige de nós um comportamento de submissão às suas regras. Nascemos para o pecado da gula. Queremos sempre mais, embora as nossas carências sejam artificializadas pelas fantasias do consumismo. Não deixa de ser uma doce e, ao mesmo tempo, uma amarga ilusão.
Fiquei perplexo com a força consumista desse movimento Black Friday. Senti a sua força compulsiva nas lojas quando, também tangido pelo consumo, fui a um shopping à procura de uma livraria para adquirir um livro, já que não há mais livrarias de rua. Ou se há, são raríssimas. Shopping, outro produto de importação, a face viva do capitalismo. Teve, na década de 1980, o seu momento de maior expansão em nosso país, transformando-se em verdadeiras ilhas de fantasias para os consumidores, espécie de mundo dos sonhos, onde a classe média realiza todos os seus desejos, inclusive o de se endividar, o que representa os tormentos de ter o nome inscrito em bancos de dados de mau pagador, o odiado SPC ou a SERASA, além figurar em nefasta lista negra, para consumo interno dos lojistas que procuram, sempre que possível, se preservar dos caloteiros juramentados ou acidentais.
Ah!, benditos ou malditos shoppings! Não conseguimos escapar do seu assédio moral, ainda mais com o advento do ou da Black Friday. Mas isso tanto faz. Quando menos nos damos conta, vem aquela sugestãozinha cruel, de quem não tem nada o que fazer: – Vamos ao shopping. E lá se vamos nós. Apenas uma voltinha, para matar o ócio. Do cafezinho para o uso do cartão de crédito é um pequeno passo que se agiganta com o pagamento da compra parcelada, a crédito, sem juros, e a perder de vista. Enfim, a dívida não programada e muito menos querida. Como acentua a psiquiatra Ana Beatriz, autora de torrenciais quantidades de livros de consumo, vendidos em proporções quilométricas: “De maneira quase natural, transformamos nosso tempo livre em mercadorias prontas para serem consumidas.” E vamos sendo consumidos, acreditando equivocadamente que estamos consumindo. Exercemos a liberdade do encarceramento do consumismo perdulário. É a nova cultura do escravismo, cujo feitor é o mercado com os seus tentáculos que nos encontram até no banheiro quando estamos fazendo a mais íntima necessidade. O diabo do celular toca. Ouve-se a voz cativante de uma jovem que se deduz que seja bela e de refinada educação. Chama pelo nosso nome, como se fosse íntima. E propõe um negócio das arábias. Um plano mirabolante, em que as vantagens são minuciosamente expostas e, você, ou quem sabe, eu, na minha santa ingenuidade, não digo o necessário “não”. Poucos dias, chega a fatura da vantagem que lhe foi graciosamente concedida. Aí se descobre que a verdade não era bem aquela; é outra, representada por valores que estão bem distantes da mensagem cativante daquela voz que lhe tratou com tanta cordialidade. Fica-se no mato sem cachorro. São as intempéries do mundo virtual da pós-modernidade. Só nos resta dançar um tango argentino, na recomendação poética de Manuel Bandeira de encarar a dura realidade.
Black Friday. Mania da sexta-feira, que só agora pra ela despertei. Eu que fui garoto de quitanda, onde se vendiam cem ou duzentos gramas de manteiga ou a banha de porco a retalho, e o azeite doce em medida, despejado na xícara ou tigela. Evoluí depois para mercearia, tipo quitanda mais requintada, metida a importante, premonição do futuro supermercado, onde as compras eram feitas mais a grosso. Agora, supermercado, onde se entra para uma compra e se adquirem dez ou mais produtos, além dos shoppings, lugar de todas as veleidades: o mundo encantado das fantasias consumistas, em que as alegrias e tristezas se entrelaçam nos sonhos e pesadelos que nos fazem mais devedores do que credores de nossas necessidades. Vivemos assim no reino encantado em que fadas e bruxas estão a nos espreitar, levando-nos aos infernos das dívidas, ou a proteger-nos das tentações de nossos desejos.
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