Aureliano Neto*
Venho acompanhando, apreensivo, o debate emocional travado na mídia sobre o “fim da censura sobre as biografias” (as aspas são necessárias). De um lado artistas da música popular brasileira, destacando-se Roberto Carlos, Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil e Milton Nascimento, integrantes do grupo Procure Saber; e, de outro lado, os escritores de biografias, entre os quais Ruy Castro, Benjamin Moser, Paulo Cesar de Araújo e a Associação Nacional de Editores de Livros, defendendo o interesse de publicá-las, sem quaisquer restrições. Jornais, revistas e jornalistas têm se posicionando, de forma intransigente, no sentido de que as biografias sejam publicadas e, só depois, os biografados, que se sintam ofendidos, devem recorrer ao Judiciário para pleitear a indenização por dano material ou moral, caso haja violação de sua intimidade ou privacidade. O conflito está na base do tudo ou nada. Entendem os editores e os escritores que devem ter total liberdade para escrever tudo sobre a vida do biografado. Qualquer restrição, independente do que seja, é considerada grave censura prévia, violando direito fundamental da livre manifestação de pensamento, garantido na Constituição Federal (incisos V e IX do art. 5.º).
Até este momento, estava equidistante. Enfim, o debate não me dizia respeito, ainda que goste de ler biografias. Algumas bem escritas. Outras, nem tanto.Todavia, andei lendo algumas coisas sérias, outras desprovidas de seriedade e umas manifestações com ideias vazias, que em nada enriqueciam os discursos prós e contras. Vim então a saber que tramita no Congresso Nacional um projeto que acaba com a censura a biografias, estando parado na Comissão de Constituição e Justiça. Tomei conhecimento de que esse projeto é de autoria do ex-ministro Antonio Paloci, tendo como finalidade retirar do Código Civil a norma que permite a censura a biografias. Não conheço esse projeto. Mas, refleti e concluí que o dispositivo do Código Civil, a ser retirado, deve ser artigo 21, que integra o capítulo concernente aos direitos da personalidade, cuja regência diz que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma”. Fiquei pasmo, porquanto essa regra não contraria a Constituição Federal, nem de forma direta nem reflexa, já que, como nos ensina Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery (In: Código Civil Comentado, 9. ed., p. 286), “a proteção dos dados pessoais é decorrência da inviolabilidade da vida privada (CF 5.º X). Sem o consentimento do titular, ou autorização legal para tanto, a ninguém é dado ter acesso a dados pessoais de outrem. Quer para apenas conhecê-los, quer para divulgá-los, quer, mais ainda, para praticar ato que possa trazer constrangimento ou prejuízo (moral ou patrimonial) àquele que sofreu referida violação”.
Sobre a questão, li alguns posicionamentos sensatos e outros absurdos. Num texto publicado por Paulo Cesar de Araújo na Folha de São Paulo, em 19/10/2013, p. A3, extraio essa bobagem, como força argumentativa de suas ideias: “Nada também foi cobrado de Gilberto Gil por ele cantar Chacrinha e sua Terezinha em ‘Aquele Abraço’. Nem de Caetano Veloso, por canções como ‘Giulietta Masina’, sobre a atriz italiana, e ‘Menino do Rio’, sobre o surfista Petit.” Que tem isso a ver com biografia, censura, liberdade de expressão, inviolabilidade da intimidade e vida privada? Nada e nada. Outro tasca o seguinte argumento, que mais parece um contra-argumento: “Os historiadores deveriam pedir autorização aos descendentes de dom Pedro 1º para narrar as relações do imperador com suas amantes?” Meu Deus, a não ser que se mudem os conceitos, história é história, tem finalidade didática, de reconstrução de um passado com enfoque de preservação da memória nacional e finalidade educativa. Biografia, até que se prove o contrário, está mais para especulação, um diletantismo para satisfazer curiosidade. E nada mais, mesmo porque, sob o ponto de vista de método de pesquisa não científico, é discutível.
Nesse vasto cipoal de incongruências, do tudo ou nada, encontrei uma voz perdida no deserto de ideias. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido pela alcunha de Kakay. Em texto publicado na Folha, em 19/10/2013, p. A3, faz algumas interessantes e consistentes ponderações. Ressalta: “O assunto é fascinante: pondera dois direitos constitucionais, o da informação e o da intimidade.” E diz mais: “O direito à informação é o que se aplica às biografias. O biógrafo se informa para contar o que julga ser verdade sobre o biografado. Se inventar, é ficção, não biografia.” Assim, arremata: “Não existe direito absoluto, nem à informação, nem à intimidade.” Com razão. Nada é absoluto. Nem mesmo a liberdade de expressão ou de manifestação de pensamento. Há outros direitos, garantidos pela Constituição Federal, que podem conflitar-se entre si, gerando o que se chama de colisão de direitos fundamentais. Assim como a Carta Republicana assegura o livre exercício da manifestação de pensamento e a liberdade de expressão como atividade intelectual e artística, do mesmo modo, garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Essa colisão não é afastada com a simples exclusão do art. 21 do CC, que nada mais é do que uma extensão infraconstitucional, no âmbito do estatuto privado, de um direito fundamental prevista na Constituição, intocável por ser cláusula pétrea. Todas as controvérsias que envolvam colisão dessa espécie serão resolvidas caso a caso, aplicando-se a regra da ponderação, porquanto a prevalência de um ou de outro direito irá depender da valoração dos bens jurídicos em disputa.
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