Aureliano Neto*

Ainda, de todo, não havia acordado. Olhei para a janela e percebi, num relance, alguma luz insinuando-se a penetrar pela opacidade do vidro canelado. Os restos da madrugada insistiam em permanecer no horizonte, embora percebesse que o dia se aproximava perseguido por alguns tímidos raios avermelhados que prenunciavam o despontar do sol. Não levantei. Ao contrário, apreguicei-me, ficando a estremunhar-me na cama. O dia anterior não fora dos melhores. Cansativo do começo ao fim. Queria curtir-me um pouco, ainda que fosse, em rápidos devaneios. O corpo sucumbira ao sono. Como enfatizavam meus avós, um sono pesado, mas reparador dos tormentos de um dia que se fora muito exigente. Teimava em continuar na cama. A força física do corpo não vencera a modorra do despertar.
Logo estava a passar o vendedor de cuscuz, pregoando a pleno pulmão a oferta dessa aguardada iguaria maranhense, tão do agrado de todos. Parece que o estava vendo, em marcha lenta, a carregar sobre a cabeça, protegida, habilmente, por uma rodilha, a pequena caixa de flandres, contendo de um lado o cuscuz de arroz e, do outro, o de milho, a gosto do freguês. No passar do pregoeiro, as portas, à metade, vão se abrindo para assomar os compradores matinais, alvejados pelos primeiros raios de sol. Trazem à mão o prato ou qualquer outra vasilha para receber o cuscuz comprado, para ser saboreado no café da manhã. Não posso deixar de pensar: a minha preferência é o cuscuz de arroz. Com uma passada de manteiga, é ideal com um café bem quentinho.
Ao lado dessa reflexão matinal, fiquei a pensar na mulher do celular. Veio de supetão a lembrança. Algo que me inquietou. Era dia 30 de setembro de 2011. É bom que fique registrada essa data. Vivia-se, como ainda se continua a viver, a longínqua e tormentosa, porém necessária, greve dos bancários. Tive necessidade de ir ao banco. Caía a tarde e se iniciava a noite. A agência aonde fui, estava cheia. Muita gente para fazer as suas operações financeiras. Mas sem tumulto. Apenas vontade de cumprir suas obrigações e retornar para o recôndito do lar. Lar doce lar, como já disse o poeta mundano. Mas deixemos o poeta de lado. Entrei apressado na agência, para enfrentar uma fila de alguns desagradáveis metros. Num dos cash uma mulher. Estava ao celular, numa conversa interminável. Diga-se a bem da verdade: além de interminável, em voz altíssima, como se fosse um soprano, a vociferar daquele reduzido palco os tormentos das dores da personagem que grotescamente representava numa hora e lugar errados. Os da fila, a olharem a insensibilidade daquela mulher, a espargir no recinto a sua educação familiar e solidariedade para com aqueles que pretendiam ver-se livres das suas obrigações. E ela lá, intimorata, telefone ao ouvido, numa conversa privada em profusão pública, tratando dos seus assuntos particulares, já agora do conhecimento de todos, e aumentando ainda mais o sofrimento dos que mourejavam na espera. Bem. Refletia: cheguei a um dos caixas eletrônicos, paguei todas as minhas contas e a mulher do celular mantinha-se impoluta, sem se afastar um só centímetro do cash e sem desgrudar o maldito telefone do ouvido. Os outros, que tivessem a inesgotável paciência de esperar. Pensei na velha educação caseira, em que os pais ensinavam o respeito ao outro e o exercício da solidariedade. E aí insistia no velho bordão: os tempos mudaram; com eles, as pessoas.
De repente, um som agradável. Saio do pesadelo do celular para o sonho de um canto. Aprumo o ouvido para melhor captar o som. A luz do sol se faz mais acentuada. Parece que o dia rompeu a escuridão da madrugada. Mas esse rompimento não é apenas de luz. É o canto forte, a florear um estribilho, como se fosse um verso que nasce da natureza. Presto mais atenção. Sou enfim despertado por essa ave tão maranhense, o bem-te-vi. Ela está logo ali, sobre o beiral de um dos telhados não muito distantes, bem na frente. Canta repetidamente. - Bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi! É mais do que um canto. É um anúncio do novo dia, que desperta ensolarado. Atendi ao repetido chamado e saí à janela para ver o bem-te-vi e sentir mais de perto o seu cantar. É um canto alto, de um soprano lírico-ligeiro, bem sonoro e atraente, que se projeta do bico de uma ave tão pequena, mas tão avassaladoramente canora. Não tem mais do que vinte e três a vinte e cinco centímetros de tamanho, papo amarelado e uma lista branca a coroar-lhe a cabeça, e sempre a emitir um canto forte, que atravessa a distância e tem o poder de despertar o dorminhoco mais cansado do mundo, como fez comigo nesta manhã. Bem-te-vi, ainda bem, bem-te-vi. E a manhã anunciou com o canto operístico do bem-te-vi. Parece um quase nada, mas é tudo.
 

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