Aureliano Neto*

Confesso que fiquei abalado não com o fato em si, mas com o motivo do fato em si. Até porque o fato em si, como conseqüência, faz parte do nosso dia a dia, a não ser que deixemos de jornais e revistas de lado e desliguemos os aparelhos de televisão. Mas, fazendo uma ligeira paródia de Chico Buarque de Holanda, todo dia se faz tudo igual, rotineiramente igual: mata-se, estupra-se, rouba-se, furta-se, corrompe-se e se é corrompido, mente-se, praticam-se levianos estelionatos, enfim estão cotidianizados os mais qualificados e inqualificados crimes, ou, se não embarcarmos no excessivo sensacionalismo, foi dada a eles a dimensão que o delinquente tanto adora: a divulgação nacional na qual os seus malfeitos são elevados, projetando-se a própria figura do malfeitor e, ao mesmo tempo exorcizando-se, as instituições como a Justiça, a polícia e, como não poderia ser de outro modo, os políticos - esses sempre alvos dos ataques, embora vivamos num sistema democrático, em que o exercício do poder ainda não foi transferido para a outra esfera que a si denomina de também de poder. O pior de tudo: é que esse discurso sensacionalista, apelativo e populista não tem contribuído para sequer mitigar as mazelas sociais. Muito pelo contrário, essa exacerbação da emotividade, caracterizada por um patológico denuncismo justiceiro, não tem caráter de combater, na sua origem, os males que nos sufocam. Pelo contrário, ao fazer uso desse discurso do pânico e da ineficiência das instituições, prega um rigor apenas impactante, mas que a prática da própria instituição donde sai essa voz de clamor é de apropriar-se de toda essa podridão, fazendo dela massa temática de seus programas (entre os quais os folhetins novelescos de nenhuma expressão estética e de absoluta pobreza moral) no vale tudo da busca de audiência. Nada obstante, sempre obtendo resposta positiva nesses apelos destituídos de eticidade.
O que me chamou à atenção, e creio que de todos vocês: uma corriqueira notícia divulgada nos jornais no dia 23 de maio deste ano de Nosso Senhor Jesus Cristo, que deve ainda estar se contorcendo de dor, apesar da cruz que carregou por nós para expurgo de nossos pecados.. Mas, reitero: o que me chamou à atenção não foi o fato em si, mas a consequência brutal que levou ao fato em si.
O texto jornalístico não fora divulgado especificamente numa página policial. Encontrava-se num caderno havido como nobre. Uma nota destacada fez com que eu fosse ao conteúdo da reportagem. Dizia: "Empresário se matou após atirar em dentista e em executivo dentro de apartamento; bebê ficou ileso." Não sou muito dado à leitura de notícias policiais. Não me apetecem. Ao contrário, tenho devotada aversão por elas. Mas, vi a foto do casal, vítima do assassinato. Aparência jovial, com fisionomia alegre, como se estivesse a fazer propaganda de algum produto desses que fazem milagre, tornando velho jovem, e o jovem mais jovem ainda. Isso: pareciam vender saúde. E me perguntei: por que matar pessoas tão jovens, de boa aparência, alegres, e apresentando aspecto de quem nunca irá, por qualquer motivo, ainda o mais banal que seja, morrer um dia, em circunstâncias humanamente previsíveis? Sem dar resposta, refleti: - Pessoas que a gente olha e afirma sem relutar: vão-se eternizar, por demonstrarem possuidoras de uma felicidade extravagante, inarredavelmente congênita. Fiquei nesse ponto, a fazer reflexão para mim mesmo. E fui adiante.
A trágica notícia informava que uma discussão provocada pelo barulho de sapato no piso de cima de um apartamento terminou na morte de três pessoas. Fato esse ocorrido num condomínio de alto padrão em Santana do Parnaíba, na Grande São Paulo. E ressaltava: o casal formado por um executivo de uma multinacional, de 40 anos, e sua mulher, uma dentista, de 38 anos, foi assassinado a tiros dentro de casa por um empresário, de 62 anos. Segundo a polícia, o desfecho do duplo homicídio foi em decorrência de desentendimentos por um motivo considerado banal, que se originou no mês de julho do ano passado. O autor dos crimes reclamava da batida do salto de sapatos, muito forte, no apartamento das vítimas, que ficava na parte de cima. Desentenderam-se, ou não procuraram entender-se. Armou -se de um revólver 38, foi até à residência dos moradores do apartamento de cima e os matou, deixando apenas ilesa uma criança, a filha do casal, de um ano e meio.
O barulho, segundo dizem, foi a causa de tudo. Sim. Um mero inacreditável barulho de batida de salto de sapato fez com que um tresloucado tirasse a vida de duas pessoas, que pareciam que iam viver eternamente. E depois que matou, matou-se. Alguém teve o cuidado de rotular aquele momento fatídico: - Foi um dia de fúria. Se esse péssimo exemplo pega, muita gente recorrerá a esse expediente para alcançar o que os especialistas chamam de direito ao conforto acústico, em que pese a existência de leis que consagram a todos nós o sossego de dormir o sono dos justos, embora haja aqueles que prefiram as algazarras das alegrias sem limites à solidão do silêncio. Portanto, conclama, temeroso: silêncio aos insensatos dos celulares, que caminham pelas ruas a gritar as suas intimidades, silêncio aos que, mesmo no recôndito da alcova, clamam ao mundo circundante os seus prazeres. Silêncio, porquanto um mero toc-toc de salto de sapato pode conduzir à tragédia de uma morte indesejada. Portanto, mais uma vez: silêncio, o barulho nem sempre é um bom conselheiro, e pode ser redundar num grave e imprevisível infortúnio.

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