A cada morte violenta que tomo conhecimento me vem à mente o título de um filme que nem cheguei a ver, mas que, por isso mesmo, ficou encravado no meu inconsciente. É produção brasileira e se chama A morte comanda o cangaço. Não tendo assistido ao filme, ficou-me a ideia, em decorrência do agressivo título, que se tratava de uma história violenta de cangaceiros. Deduzi que assim fosse, porque, antes havia visto O cangaceiro, e, embora fosse em preto em branco (já havia filmes coloridos), contava a história de um cangaceiro tipo Lampião, de caráter impiedoso. Uma passagem do filme Cangaceiro me ficou gravada até os dias de hoje. Projeta a cena de um grupo de cangaceiros a cavalo e em fila, e, no fundo, num cantar dolente de vozes, o som da música Mulher rendeira, tradicional canção sertaneja, que embalou muitas redes no sertão e na cidade.
A morte violenta que me suscitou a lembrança do filme foi o brutal assassinato, em São Luís, do médico Luiz Alfredo Netto Gonçalves Júnior, que, segundo a notícia dos jornais, deu a vida para salvar os familiares (mulher e filhos). Os assaltantes não tiveram dó. Mataram-no sem nenhum motivo, a não ser o de praticar um crime tão hediondo, caracterizado de uma crueldade transcendental. Não conheço outra versão. Apenas a do jornal. Pego o jornal desta terça-feira e vejo o destaque da matéria, a foto da vitima e o sepultamento daquele que em vida ajudou a salvar muitas vidas. Novamente, como se perseguido pela infância, me vem o nome do filme: A morte comanda o cangaço, algo sugestivo para os dias atuais. A primeira página, em manchete, denuncia, em letras maiúsculas, que, da noite de sexta-feira até a madrugada de segunda, foram 23 assassinatos na região metropolitana da Ilha do Amor, que vive o seu momento cruel do drama do desamor. É banalidade da morte, ou da vida. A vida e a morte têm pouco valor para aqueles que perderam a consciência de que ainda somos seres humanos.
De passagem, vale este registro. Quando do julgamento de Eichmann, em Jerusalém, a filósofa judia Hannah Arendt foi acompanhar, como correspondente do jornal New Yorker. Dos apontamentos que fez, nasceu o polêmico livro Eichmann em Jerusalém, em que, pela primeira vez, faz menção à banalidade do mal, a fim de caracterizar “a falta de profundidade evidente”, que caracterizou os atos de atrocidades praticados pelo culpado. O livro desagradou à comunidade judia e foi tachado de antissemita. Mas continuou vivo, após a morte de Arendt. Recentemente, tive oportunidade de ver o filme sobre Hannah Arendt, extremamente encantador, até porque trata especificamente da controvérsia gerada pela publicação do livro, do seu conteúdo e do tiroteio verbal de que foi vítima a filósofa.
Banalidade do mal, expressão utilizada pela primeira vez por Hannah Arendt, em Eichmann em Jerasulém, a fim de dizer que o culpado, ainda que muito culpado, agira por suas firmes convicções ideológicas de cumprir determinação nazista, sem motivações especificamente malignas. Ainda assim, não deixava de ser culpado e de ser um monstro no papel de carrasco de Hitler, ao participar, embora cumprindo ordens, da destruição dos judeus nos campos de concentração.
Retorno à conversa inicial: a morte e a vida estão se banalizando. Vejam que holocausto: apenas num fim de semana, 23 assassinatos na região metropolitana de São Luís. – Deus, ó Deus, onde estás que não responde?! Clama o poeta condoreiro espantado, a ver seus diletos filhos sendo dilacerados pela insana dos assassinos. Aonde chegaremos? As coisas estão tão banais!, exclamam os mais incrédulos. A uma jovem esbelta foi perguntado: – Você tem filho? Sim, respondeu, sem demonstrar grande emoção. Trata-se de uma entusiasta do trabalho e do estudo. Veio a indagação seguinte. Desnecessária, mas veio. – Com muito amor? – Não. Produção independente. Pois bem. O ato de nascer deixou de ser um acerto amoroso e passou a ser um projeto de criação. O filho é apenas um projeto. Mas, isso mesmo, mas após as conquistas pessoais se realizaram. Já não é mais produto natural da união, do amor. É um projeto de engenharia familiar. A família deixou de ser uma entidade sociológica e afetiva “projetada” para ser família. Não. Já não bem assim. É concebida em face de uma engenharia construída para o futuro, imune à velha e carcomida bola de cristal consegue prever em vai dar.
O diálogo inconsequente prossegue, ainda que fosse o diálogo de si para si mesmo. – Você nasceu onde? – Resposta imediata: – Não nasci. Como? – Sou produto de um aborto mal sucedido. Ah, tá bem! Tem marido? – Não existe essa história. Vivo só. Cada um por si.
Assim, a vida e morte estão sendo banalizadas por todas essas banalidades. Ora no sentido de um suposto bem, ora para mal. Reitero, obsessivamente: de sexta-feira para a madrugada de segunda, 23 pessoas mortas pela banalização do assassinato. Matar passou a ser mais fundamental infelizmente do que nascer. Mas ele, o médico Luiz Alfredo, que salvou tantas vidas, morreu – chorou o filho mais velho as lágrimas de todas as dores – para proteger a família. E quem nos protegerá? A Deus, o nosso eterno Pai, cabe a resposta. Mas, embora crendo, fiquemos atentos para não sermos vítimas da banalidade.
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