Andar sobre as pedras de Paraty e como flutuar sobre as águas de um mar revolto, procurando o apoio num braço forte imaginário, que nos ajude a vencer cada passo do caminhar, trôpego. Pelo menos, para mim. Olha-se o chão. Relança-se o olhar para diante, a fim de que os pés possam sobrepor-se em alguma base mais sólida e segura. Caminha-se pelos lados ou pelo meio, para chegar à Tenda dos Autores, à Casa da Cultura, ou ainda à Casa da Folha. Muitos são pontos de eventos culturais, não só sobre literatura, mas da arte em geral. A Festa Literária Internacional de Paraty, com autores brasileiros e estrangeiros, mundialmente consagrados, chegou, com êxito, a sua 12ª edição. Desta vez, homenageando o humorista, dramaturgo, desenhista, cartunista, poeta e jornalista Millôr Fernandes, que, segundo Ruy Castro, que com ele conviveu durante mais de quarenta anos, é também cronista. São doze edições da FLIP, de inquestionável êxito, tendo iniciado no ano de 2003, com as presenças de Julian Barnes, Don DeLillo e Eric Hobsbawm. Um evento de grande porte, que amadureceu e cresceu em qualidade, trazendo, para troca de experiência com o público brasileiro, novos talentos literários, como os jovens romancistas, a britânica Eleanor Catton e o francês Joël Dicker, autores dos premiados romances Os Luminares e A Verdade sobre o Caso Harry Quebert. A primeira ganhou o prêmio Man Booker Prize, e o segundo, o Prix de l’Académie. Ambos escritores na alvorada da vida acadêmica, com 28 anos de idade.
As pedras não só fazem os caminhos de Paraty, embelezando-a, servindo de moldura horizontal para os seus antigos e belíssimos casarões, que abrigam as pousadas, restaurantes e casas de eventos culturais. Mas pedras são também os caminhos percorridos por muitos artistas, aqueles que fazem da arte de escrever um meio de transfigurar a realidade. Ferréz, que integrou a geração da poesia marginal, publicando a duras penas o seu livro de poemas concretos, participou do evento Sociedade e Literatura, na Casa da Cultura. Fez relato da sua história, tendo na plateia, jovens estudantes de Paraty. Ressaltou que os livros foram o seu caminho, começando a ler a partir de uma revista em quadrinhos, que fora abandonada num banco de praça, mas que dela só se apropriou depois que a sua mãe autorizou a pegá-la. E os livros - acentuou Ferréz, hoje escritor consagrado - abriram a sua vida. “A literatura dá o discurso e tem que dar a ação”, entusiasmado, disse Ferréz, ao fazer a relação entre a sociedade e a arte de escrever, já que escrever é viver.
Millôr, o homenageado pela 12ª FLIP, deixou vastíssima obra, além de inúmeras frases que o celebrizaram. Algumas inteligentes; outras nem tanto. Também pudera o homem não pode ser tão perfeito assim. O próprio Millôr reconhece, quando afirma que “todo homem nasce original e morre plágio”. Talvez sim, talvez não. Era vaidoso, embora tenha dito que “não ter vaidade é a maior de todas”. Entre suas milhares de frases, duas delas me chamaram a atenção: “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.” E: “O capitalismo é exploração do homem pelo homem; o comunismo é exatamente o contrário.” Millôr é, em si, uma verdade controvertida, que serviu de mote para os temas que foram objeto de exposição e debate (na verdade, perguntas) nesta última FLIP. Paraty e as suas deliciosas pedras regurgitaram de alegria. Era gente pra lá e pra cá. Lá me encontrei com o escritor português Almeida Faria, autor do romance A Paixão. Antes de vê-lo em Paraty, por acaso, fiz contato com ele na Livraria Travessa, no Leblon. Comprara o seu livro (A Paixão) e estava a fazer uma rápida leitura, de reconhecimento temático. Numa poltrona ao lado, uma senhora, observava-me, sem que percebesse. Após, chegou o escritor que logo soube quem era. Veio até a mim. Perguntou-me em sotaque português de Portugal se eu estava lendo o livro A Paixão. Disse-lhe que sim. Sem arrodeios, disse-me que era o autor do romance. Cumprimentamo-nos. Ele autografou. E voltamos a nos encontrar pelas ruas de pedras de Paraty. Ele, como eu, caminhando no balanço das pedras, tendo o cuidado de pisar no lugar menos tortuoso e mais recomendado para não sermos vítima de algum desequilíbrio de rota, ou de rótula.
Paraty é bela. Culturalmente bela. Maria Gouvêa, num dos poemas da sua obra Tecendo Poesia, soube expressar esse sentimento poético: “Há poesia pendurada / nas sacadas e nas portas / dos velhos sobradões (...) Em cada pedra dormente, / em cada portal colorido, / em cada sobrado antigo / vibram vida e nostalgia / estranhamente unidas / pelos elos da existência, / resquícios do antigamente, / doce abandono sentido / em outras tardes de sol.” Paraty possibilita esses relembramentos, que reforçam e sedimentam o fazer poético. Marcelino Freire, outro ícone da literatura marginal, bem sucedida, ao referir-se a sua fala, ao seu mundo, não deixou dúvida de que a argamassa da sua literatura está na sua fala, e que, quanto mais se aproxima da sua mãe, mais se aproxima de sua fala. O silêncio de seu pai é a sua fala. Enfim, o seu repertório é a fala da sua gente e da sua terra. Isso é também Paraty, que fala por suas pedras, sobradões, janelas e pela voz silenciosa de sua gente. García Marques nos diz que todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade. Louve-se então, por si só, a realidade poética de Paraty, e já é o bastante.