Manifestantes têm desfilado por nossas mais democráticas avenidas, ostentando cartazes em que demandam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Nessa tresloucada ânsia intervencionista, pescaram da Constituição Federal um artigo que lá se encontrava dormitando desde a sua promulgação, o art. 142, quando se deu o sepultamento definitivo do regime ditatorial civil-militar. Tudo isso contraria as grandes lutas pela restauração da democracia brasileira e o teor da mensagem – A Constituição Coragem – do deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia Constituinte, na qual esse grande brasileiro denomina a Carta da República de Constituição Coragem, afirmando, no final, que “a Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça”.
De lá para cá, o tempo tem passado e, quiçá, não sepulte todas as nossas utopias de construir uma nação solidária, sustentada nos postulados sagrados da liberdade e igualdade, direitos fundamentais de toda a qualquer sociedade que se denomine cristã.
E esse art. 142 da CF, em manifestação de completa alienação mental, tem sido esgrimido pelo chefe do Poder Executivo. O que é de lamentar-se.
Na democracia, regime de governo institucionalizado pelo ordenamento político-jurídico do Brasil, só se admite a intervenção pelo voto. Ou o voto popular nas eleições para escolha de seus representantes, ou no referendo e no plebiscito, ou voto nas aprovações ou não dos projetos legislativos. Não há nem pode haver intervenção militar. Havendo, é golpe de Estado.
Consoante o art. 142 da CF, a autoridade suprema das Forças Armadas é quem preside a República, assumindo essa condição de poder pelo voto. Em decorrência dessa escolha, legitimada pelo voto, qualquer pessoa do povo, desde que atenda aos requisitos de elegibilidade, sendo eleita, pode ser o chefe supremo das Forças Armadas. Isso, de modo simples, quer dizer: pode ser um professor universitário ou não, um militar (capitão, sargento, tenente, etc.), um metalúrgico, ou qualquer outro operário, um braçal, uma doméstica. Pois bem. O voto popular é que dirá quem deve presidir a nação. Por esse processo de eleição e voto, é ao poder civil que estão as Forças Armadas submetidas. Qualquer entendimento diverso é antirrepublicano e agride a Constituição Federal.
O que são a lei e a ordem, referidas na parte final do art. 142 da CF? São as instituições democráticas, que devem ser garantidas conforme constam no Título V da própria Carta da República. Nada têm a ver com intervenção militar em se tratando de exercício de função de poderes da República. Consoante entendimento de Lenio Streck, em substancioso texto publicado na Conjur, em 7/5/2020, não são as Fas garantidoras da democracia, nem representam “poder”, no sentido que se extraia da Constituição Federal, assim não tendo característica institucional de “poder moderador”, que, pela Constituição imperial de 1824, foi exercido pela monarca, aí sendo caracterizada uma espécie de quarto poder. As Forças Armadas são uma instituição de Estado, submetida, em face da disciplina e a hierarquia, à autoridade suprema do presidente da República, mas podendo ser convocada por qualquer dos poderes, nos termos da Lei Complementar nº 97/99.
Nesse sentido, pode-se extrair esse entendimento do constitucionalista Flávio Martins (In: Curso de Direito Constitucional, 3. ed., Saraiva, 2019, p. 1538): “Primeiramente, segundo a Constituição Federal, as Forças Armadas, subsidiariamente elas poderão ser acionadas para garantia da lei e da ordem, desde que por iniciativa de qualquer dos poderes constitucionais (art. 142, caput, CF). Tal atuação está regulamentada no art. 15 da Lei Complementar n. 97/99.).
E por que o art. 142 da CF foi regulamentado, para daí em diante ter vigência? Por determinação expressa do § 1º dessa mesma norma constitucional.
Mas há aqueles – uma minoria de anti-hermeneutas -, como Ives Gandra Martins (o pai), cujo pensamento, na interpretação assistemática, é distópico: “Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema.” Uma interpretação, quem sabe, de amor filial, mas que foi combatida pelo seu caráter assistemático. Ainda bem.
Membro da AML e AIL.
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