Terminada a festança, teria que vir a bonança. Ou melhor, nem sempre: o que vem mesmo é uma forte tempestade. Por que isso? Quando tudo acaba na quarta-feira, cessando o retinir dos tamborins, a gente volta pra luta. Viver é lutar. É o cotidiano que nos chama. Como diz o poeta Chico na célebre canção: carnaval/desengano/quarta-feira/sempre desce o pano. O carnaval mudou. Tudo mudou. A vida mudou. Óbvio, né? O pano não tem dia para descer. Muito menos a máscara para ser tirada. Somos palhaços dos risos e das lágrimas.

Sempre foi assim. Desde os tempos idos, quando relógio era apito de fábrica. Pois é, já se viveu essa época, que não vai longe assim. O trabalhador - esse homem forte, aliás fortíssimo - ficava de ouvido atento, aguardando o soar do apito, para, às pressas, sair de casa e não perder o horário. Ao apitar, alertando para o início das atividades, o operário-tecelão, cutucado por aquele som estridente, saía em disparada, como se fosse um fundista na ânsia de cruzar, em tempo, a linha de chegada.
Vi muitas e muitas vezes D. Deja e D. Neném, meus personagens desta crônica, que mal tinham tempo de engolir o feijão com arroz e o naco da carne assada, e, ao toque do apito, saia cada uma para o seu lado, em passos ligeiros, correndo, vencendo a distância e as ruas barrentas, para não atrasarem no retorno do almoço. Tarde da noite, voltavam para casa. Havia apenas a hora de entrar. De pegar no batente, como era o dito. Com reduzidíssimo tempo para o almoço, só meia hora.
A vida do tecelão daqueles tempos era dura. Muito pouco de lazer. A não ser os filhos, feitos em série. Não havia horas extras. Só trabalho e o salário, pago semanal ou quinzenalmente. Em pedacinhos. Vi tudo isso de perto, retratado na vida cotidiana de D. Deja e D. Neném, que, com sacrifícios imensos, conseguiram criar e educar os filhos, meus amigos de vizinhança.
Os direitos trabalhistas, embora existissem leis que os garantissem, eram relegados ao desrespeito. O valor do operário era quase nada, chegando aos limites da escravidão.
Antes da era Vargas, hoje tão execrada, seu Eduardo, um grande amigo, me prestou alguns depoimentos a esse respeito. E dizia: cedo, bem de madrugada, se deslocava para a fábrica. Não tinha hora de voltar. Entrava pela noite. Não pagavam horas extras. Não tinha carteira assinada. A aposentadoria era a morte.
Parece que estão com mórbida saudade daqueles tempos. O emprego é o mais fundamental, dizem os "especialistas", que defendem a nazista tese de que os fins justificam os meios. Ou seja: não interessa a escravização do trabalhador, desde que ele consiga o seu emprego e, no final do mês, receba o seu salário (de fome).
Mas voltemos às fábricas, na capital. Eram tantas: Fabril, Camboa, Santa Amélia, Rio Anil, Cânhamo, que os seus apitos, semelhantes ao chicote do feitor, eram soprados em vários cantos da cidade, servindo não só para chamar o operário, mas para marcar a hora de todas as atividades. A ida à escola. Do almoço. Da ida e do retorno ao trabalho.
A Fabril era o relógio das minhas necessidades. - Olha o apito. Já são quinze para doze, alertavam os mais velhos. Esses apitos marcavam os meus passos. A hora de abaixar o papagaio. O banho. O almoço. E a saída de casa, com a bolsa cheia de livros às costas, para, a tempo, chegar ao Sotero dos Reis, bem em frente à Igreja São Pantaleão, bem na horinha de formar a fila, ou ainda a tempo de jogar bola ou brincar de pegador.
Os apitos de fábrica, antes de tudo, eram uma convocação irrecusável para a vida. Cedo, a cidade despertava do sono mal dormido. Com o desaparecimento das fábricas, perdemos um pouco daquela referência cotidiana.
Noel Rosa captou bem o sentido poético do apito, ao cantar a sua Vila Isabel, fez referência ao apito da fábrica de tecido que feria o seu ouvido, mas a amada, mesmo assim, não conseguia atender a buzina do seu carro. É a poesia e o samba, entrelaçando-se nessa saborosa canção do poeta da Vila.
Voltando aos nossos tempos, em que os rústicos prédios das fábricas foram transformados em relíquias de casa velha, restaurados para atender a outras finalidades, leio o depoimento de um famoso empresário, desses com tendências escravocratas, Sr. Benjamin Steimbruch, então vice-presidente da Fiesp. Figura importante no cenário do atual governo, que teve a insensatez cínica para muitos, e coragem cívica para outros de dizer que não tem sentido o trabalhador ter uma hora extra para almoço, porque poderia muito bem operar uma máquina com uma mão e comer um sanduíche com a oura. Recebeu retumbante ovação da turma da reforma. Realmente, ao considerar essas ponderações do Sr. Steimbruch, e, com o caminhar das reformas, logo estaremos voltando à época das fábricas, com um acréscimo modernizante: o trabalhador ou trabalhadora pode economizar tempo e almoço, sem necessidade de voltar às pressas para casa, em homenagem a essas modernas ideias de comer sanduíche com uma mão e continuar a trabalhar com a outra. Havendo cansaço de uma das mãos é só fazer a troca, para não se perder tempo e continuar prestando bons serviços ao empregador, que, infelizmente, tem a virtude de oferecer ao pobre coitado o emprego. E o que ele quer mais?! Tá chorando de barriga cheia, com o sanduíche numa das mãos. E, civicamente, trabalhando com a outra. Um malabarismo digno de tempos de Rodrigo Maia e etc.