Apesar de você, a democracia venceu. E vai passando e passando, aos trancos e barrancos e tropeços. Apesar de você, Sabiá – uma canção bonita pra chuchu, de Tom e Chico – ganhou, e Cainhando se eternizou, pra não dizer que não falávamos de flores. Quem não se lembra, na exaltação de Vandré: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, / Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Apesar de você, ainda “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhe ensinam antiga lição / De morrer pela pátria e viver sem razão”. Como em 64, há por ai muitos soldados não fardados. Apesar de você, caminhemos, vamos embora, em frente, sem o nacionalismo da pátria de chuteiras, que a direita fez dele uso barato, na voz reacionária de tantos e, entre tantos, do nosso Nelson Rodrigues, apesar dos pesares, grande cronista e teatrólogo. Apesar de você (Nelson), uma coisa não tem nada a ver com a outra. Arte é arte, e ser reacionário é o exercício do individualismo retrógado. Apesar de você, as coisas podem não ser o que parecem. E, às vezes, são, embora aparentem não ser. Apesar de você, a direita está cada vez mais arisca e inquieta, aproximando-se perigosamente da marca do pênalti. E, segundo Vladimir Safatle, Folha de São Paulo, 1.º de abril, a ditadura venceu. Não quis acreditar. Pensei que fosse mentira. Mas, apesar de você, pensando bem, não é bem uma mentira. Pode ser uma suposta e plausível verdade. Apesar de você, conforme nos informa Joaquim Ferreira dos Santos, em sua bela crônica, O Globo, 31 de março – 1964, A Chanchada – “uma das poucas coisas bonitas nesta História de 1964, o ano que precisa de um copidesque mais bem-humorado, foi Brigitte Bardot”, fundadora com a formosura da sua plástica corporal das belezas da cidade de Búzios, que transava com o namorado a céu aberto, nuinha, fazendo a democracia da entrega total. Ao fazer o seu sentido retorno para a sua terra de origem, sapecou essa fofura de declaração: “Adorei a revolução no Brasil, na qual não houve morte nem tiros. Os brasileiros são mesmo adoráveis, pois resolvem seus casos sem briga.” Ah!, Bardot, apesar da tua ingênua observação, quantos tombaram nos porões dessa “revolução” de “adoráveis” brasileiros.

Apesar de você, Chico, de Sabiá, na sua infinita bondade estética, nos doou Apesar de você. E, depois de caminhando e cantando e seguindo a canção, ele vem nos provocar, naquele momento de dor, alertando que hoje você é quem manda, falou tá falado não tem discussão, e a minha gente hoje anda falando de lado olhando pro chão, mas você inventou esse estado e inventou de inventar toda a escuridão. Ironicamente, e aí está o grande problema de toda essa invenção e do apesar de você, como é que o inventor vai proibir quando o galo insistir em cantar. Apesar de você, ainda assim, quando chegar o momento, todo esse sofrimento, há que ser cobrado com juros, por isso é que juro que será cumprido esse juramento, para deixar passar esse grito contido, apesar de você.
São tantos vocês que contribuíram para a escuridão e para o grito contido, que, passados os anos, com as perdas e sofrimentos, vêm se ajoelhar para pedir perdão. Ora bolas, você inventou o pecado e, lembre-se, esqueceu-se de inventar o perdão, e, agora, depois da escuridão, queres ser perdoado. Apesar de você, Vladimir Herzog foi morto sob tortura no DOI-Codi, e Marighella foi assassinado, depois de traído. E, apesar de você, a seleção brasileira de futebol foi tricampeã mundial no México. Em 70, lembram-se?! Ainda apesar de você, não escapou de ser alijado da vida o metalúrgico Manuel Fiel Filho, também por coincidência da história e apesar de todos os pedidos de perdão, morto nas dependências do DOI-Codi, de São Paulo, onde o delegado Fleury, não o governador paulista do genocídio de Carandiru, participava, apesar de você, da invenção dos pecados, esquecendo-se de inventar o perdão. Tudo isso apesar de você. Apesar de você, Marco Antonio Villa, e de outros revisionistas da direita, o regime militar silenciou, matou e trucidou Apesar de você, Folha de São Paulo, é preciso que se invente o perdão, para quem apoiou e se beneficiou da violência contra as instituições, contra a liberdade, contra vida. Apesar de você, Globo, a mea culpa não pode ser uma justificativa espúria para o perdão que não foi inventado, quando tantos lutaram e morreram sem ter direito a ele, enquanto outros, compungidos, em genuflexão, se persignavam ante o ditador da repressão. Ora, ora, você que inventou a tristeza, ora, meu caro, tenha fineza de desinventar. Apesar de você, noticia o Almanaque 1964, de Ana Maria Bahiana, “a casa do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, é invadida por um tenente-coronel em busca de ‘material subversivo’. Uma fita com gravações das sinfonias de Brahms é um dos itens apreendidos”. Só agora, apesar de você, soube que as sinfonias de Brahms eram material subversivo, a serem utilizadas no processo de implantação da ditadura de esquerda do governo Goulart. Apesar de você, Lincoln Gordon, conseguiu-se sair da escuridão, estreitar relações comerciais com a China comunista, firma a solidariedade na América Latina, sem necessidade de convocar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Apesar de você, amanhã será sempre outro dia, e, se quiseres repetir, você vai se dar mal, porque não haverá mais o grito contido, já que, no repto denunciador de Márcio Moreira Alves, jornalista e ex-deputado, “não são as vítimas que fazem os carrascos. É o silêncio”. Apesar de você.